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4º EPISÓDIO - DÁCIA IBIAPINA

 

SOBRE DÁCIA IBIAPINA

Dácia Ibiapina, piauiense, 66 anos, é diretora, roteirista e produtora de cinema. Graduada em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Mestra em Comunicação pela UnB, Doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPI. Tem Especialização em Cinema e TV na Escola de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Recebeu a medalha Paulo Emílio Salles Gomes como homenagem pela luta pela preservação do audiovisual no Brasil. E foi homenageada no Beira – Festival De Cinema De Porto Velho e no Festival Rastro de Cinema Documentário pela sua trajetória e contribuição para o cinema nacional. Dirigiu os filmes Cadê Edson? (2020), Carneiro de Ouro (2017), Ressurgentes: um filme de ação direta (2014), O gigante nunca dorme (2013), Entorno da Beleza (2012), CinemaEngenho (2007), Vladimir Carvalho: conterrâneo velho de guerra (2005), O chiclete e a rosa (2001), Palestina do Norte, O Araguaia Passa Por Aqui (1998) e O pagode de Amarante (1984).

INFORMAÇÕES

Este episódio foi gravado em 11/07/2024.

FICHA TÉCNICA

Realização e Produção: Respiro Filmes.
Roteiro, Pesquisa e Apresentação: Júlia Rios e Alan Rios.
Direção, Captação de Áudio, Edição e Mixagem de Som: Luiza Chagas.
Ideia Original e Produção: Heloísa Schons.
Produção Executiva: Bruna Lopes e Arthur Lima da Iroko Projetos.
Captação de Imagem: Gabriel Machado da Ada Audiovisual.
Trilha: Pratanes.
Supervisão Artística: Júlia Rios e Luiza Chagas.
Edição de Cortes: Pupila Audiovisual e Fernanda Coutinho.
Gestão de Redes Sociais: Babi Pinheiro.
Transcrição e Legendagem dos Episódios: Vini Moreira.
Criação de Identidade Visual e Criação da Logo: Rodrigo Camargos.
Ilustração do Copo da Temporada: Daniel Freitas.

Este projeto foi realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal. 

TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIO

Júlia Rios: Antes da gente chamar nossa convidada, gostaríamos de te apresentar a locação de hoje. A gravação aconteceu em frente ao Hotel Torre Palace, um local que foi alvo de uma desocupação retratada no documentário “Cadê Edson?”, dirigido pela nossa entrevistada. Bora conhecer nossa convidada.

[Música Instrumental]

 

Alan Rios: Oi, gente. Este é o Podcast Respiro Filmes, um podcast sobre cineastas do Distrito Federal. Estamos no Spotify, Deezer e também no YouTube. Eu sou o Alan Rios.

 

Júlia Rios: Eu sou a Júlia Rios.

 

Alan Rios: E hoje, a gente tem o prazer de receber, nesta temporada de direção, Dácia Ibiapina. Dácia, muito obrigado por conversar com a gente e por estar aqui.

 

Dácia Ibiapina: Eu que agradeço o convite de vocês e desejo que esse podcast seja um sucesso.

 

Alan Rios: Maravilha!

 

Júlia Rios: Uhul! (risadas)

 

Júlia Rios: Dácia, a gente vai falar da sua biografia mais técnica agora. Vamos lá. Dácia Ibiapina, piauiense, 66 anos, é diretora, roteirista e produtora de cinema. Graduada em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Piauí, Mestra em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília). Doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPI (Universidade Federal do Piauí). Tem especialização em Cinema e TV na Escola de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba.

 

Alan Rios: Isso, e tem uma produtora chamada “Carneiro de Ouro”. É isso, né? Recebeu a medalha Paulo Emílio Sales Gomes como homenageada pela luta pela preservação do audiovisual no Brasil e foi homenageada também no Beira - Festival de Cinema de Porto Velho e no Festival Rastro de Cinema Documentário pela sua trajetória e contribuição para o cinema nacional.

 

Dácia Ibiapina: Sim.

 

Júlia Rios: Dácia, a gente falou aqui essa parte mais técnica, mas quem é a Dácia Ibiapina? Como você se definiria, como talvez seus amigos e familiares falariam de você, também?

 

Dácia Ibiapina: Eu diria que eu sou uma pessoa muito acessível, uma pessoa batalhadora, que tem uma trajetória de luta e de militância. De militância pela educação pública, pela democracia, pelo cinema, sobretudo, pelo audiovisual. Então, acho que isso, de certa forma, me define.

 

Alan Rios: E quando a gente estava conversando antes de começar a gravação, a gente estava falando um pouco da sua biografia e você falou: “Nossa, já fiz isso tudo?” (risos). E, como cineasta, o que você gosta mais de destacar, Dácia? De toda essa trajetória bem longa e bem bonita.

 

Dácia Ibiapina: Eu acho que o cinema, pra mim, é minha vida (Dácia chora). Até me emociono ao falar disso. Eu acho que o cinema me constitui como pessoa. Com todas as dificuldades que isso tem.

 

Júlia Rios: Com certeza. Dácia, falando nisso, que você se emociona, quais foram os maiores presentes que o cinema te deu?

 

Dácia Ibiapina: (Ainda emocionada) Nossa, presentes? Muitos. Cada filme é um presente. Eu acho que é um presente do universo pra mim e para as outras pessoas que fazem filmes. Acho que a cada filme que a gente faz, a gente ganhou, conquistou um presente e a gente conheceu pessoas diferentes e a gente teve oportunidade de repensar a nossa existência, a nossa relação com a natureza, com o mundo.

 

Júlia Rios: Dácia, pensando nessa questão também, queria te perguntar como é seu estilo de documentário? Falando do roteiro, da decupagem, da montagem. Como que isso é pra você?

 

Dácia Ibiapina: Eu posso falar do modo de produção que eu mais ou menos sigo. Cada filme, também, a gente tem que se virar para achar o jeito que é possível fazer aquele filme, né? E cada filme é um desafio nesse sentido. Daí, a gente corre atrás pra tentar fazer o filme, porque a gente não tem como voltar atrás porque aquele tema já te escolheu e você já escolheu aquele tema. E o jeito que tem é achar um jeito de fazer. Então, no meu modo de produção, por exemplo, eu levo muito tempo fazendo um filme. E isso não é muito produtivo se você for pensar em viver de cinema, em gerar empregos e etc. Você pensar o cinema como uma indústria, como um mercado, eu não me encaixo muito nisso não. O meu cinema, ele é mais para construir memórias e é para dar visibilidade a pessoas e modos de vida que são diferenciados em relação ao nosso modo de vida. Eu espero que muitas pessoas possam se interessar por isso, eu acho que isso interessa muito. Eu não posso fazer isso pensando só que eu tô movendo uma indústria e uma atividade econômica. Pra mim, é super difícil... Eu tenho que conseguir financiamento público. Durante boa parte da minha vida, eu não tinha dificuldade de ganhar editais. Agora, eu não ganho mais os editais e aí, isso meio que inviabiliza a minha atividade de produtora de documentários.

 

Alan Rios: E, Dácia, você estava falando um pouco sobre como é esse processo de produção do cinema documental, o que me faz perguntar sobre as entrevistas. Qual o papel das entrevistas no cinema documental? Como fazer uma boa entrevista?

 

Dácia Ibiapina: Eu acho que as entrevistas em um documentário são fundamentais, porque é através da entrevista que a gente faz a pesquisa, que a gente vai descobrir quem é esse Dedé Rodrigues (Cineasta de filmes trash em Sussuapara, Piauí. Dácia fez um curta sobre ele chamado “Carneiro de Ouro”, de 2017)? De onde ele veio? Como é que ele se envolveu com o cinema? Onde que ele aprendeu a fazer filme? Esse tipo de coisa, numa entrevista você vai descobrindo o personagem, né? E isso pode servir só como pesquisa para montar um projeto, montar uma espécie de roteiro. Mas serve também para você usar esse material da entrevista no filme. E isso, eu devo muito ao Eduardo Coutinho, essa forma de pensar a entrevista e de fazer entrevistas. O (Eduardo) Coutinho falava que a melhor entrevista com qualquer personagem de documentário é a primeira que você faz. A primeira vez que você vê uma pessoa e a pessoa te vê e você faz perguntas e a pessoa responde, segundo Eduardo Coutinho, essa é a melhor entrevista que você vai ter com essa pessoa ou com esse personagem, porque ele acha que, nesse primeiro momento, você é uma novidade para o entrevistado e o entrevistado é uma novidade para você. Aí ele também tinha a forma de falar do jeito que ele fazia as entrevistas que ele falava que não era entrevista, era encontro. Era um encontro metafísico (risos). Ele tinha toda uma filosofia sobre isso, que era um trabalho com o olhar, com o corpo, com a voz, enfim, eu me identifiquei muito com essa forma dele falar sobre entrevistas e eu também fui descobrindo meu jeito de entrevistar. Eu acho que existem muitos jeitos de entrevistar e cada um tem o seu. E tem gente que faz isso dez vezes por dia, tipo um jornalista, pessoas que trabalham para redes sociais, etc. É tudo muito rápido. Então, a pessoa tem que descobrir o seu jeito de fazer suas entrevistas e nessa velocidade. Então, esse era um jeito diferente que o Eduardo Coutinho fazia, diferente do jeito que eu faço, também. Para o meu cinema, interessa essa entrevista em que eu me envolvo com o entrevistado e permito que ele se envolva comigo. Então, esse encontro, que o (Eduardo) Coutinho chamava de encontro, eu acho que é meu jeito de entrevistar.

 

Alan Rios: E Dácia, pensando em quem está ali do outro lado, assistindo a gente, deve ter muita gente da área do audiovisual. Que dicas você pode dar ou que características você acha que são fundamentais para quem quer seguir na área de direção?

 

Dácia Ibiapina: Eu acho que, na área de direção, você tem que entender de tudo. É preciso entender de tudo e é preciso vivenciar muitas coisas. Então, vocês estão aqui hoje (Dácia aponta para Alan, Júlia e as câmeras) fotografando, produzindo, etc. Eu espero que vocês estejam aproveitando e aprendendo alguma coisa também com a gente (risos). Então, acho que o aprendizado vem muito da experiência. “Ah, eu sou diretor, então, detesto produção”. Não pode ser isso. Não pode existir um diretor que detesta produção porque a produção é a base do filme que ele vai dirigir, se não tiver produção, fica difícil de ter filme. Então, eu acho que, pro diretor, é importante ver muitos filmes, escrever sobre filmes, conversar sobre filmes, ouvir os diretores falando sobre os filmes. Os festivais (de cinema) são lugares muito interessantes porque você assiste o filme e, no dia seguinte, a equipe do filme, ou pelo menos o diretor e o produtor, estão ali. Você pode assistir aquele debate daquele filme, as pessoas vão fazer perguntas, você pode fazer perguntas e, depois que termina, você ainda pode almoçar e encontrar com o diretor e falar: “Será que você se importa de conversar comigo? Eu te convido para, depois que você terminar de almoçar, a gente tomar um café. Você aceita e tal?” Então você tem uma chance de conversar pessoalmente com o diretor nesses festivais. É pra isso que existem os festivais, né? Eu acho que tem uma coisa que eu vou falar porque eu tenho idade para falar. Mas eu acho que uma coisa que é importante para um diretor é a humildade. Os diretores, geralmente, pensam que é preciso ter uma postura de superioridade. E aí eu acho que é o contrário, é preciso ter humildade para chegar nas pessoas, para chegar nas histórias, para chegar nos cenários. Eu acho que a humildade é mais importante do que a arrogância. Bem mais importante, eu acho, para um diretor. Então, às vezes, as pessoas pensam justamente o contrário. Talvez seja preciso viver mais para poder apreciar isso que eu estou falando (risadas).

 

Júlia Rios: Pensando nisso que você está falando, né? Dessa questão de que às vezes as pessoas têm essa postura, esse ego. Você sente que nesse processo da direção você tem que sempre ter todas as respostas para tudo?

 

Dácia Ibiapina: Absolutamente não. Eu acho que você tem que ter algumas respostas sobre você e aquele projeto. Isso você precisa estar sempre prestando atenção como é que você está em relação àquele projeto, em relação àqueles personagens, em relação àquele modo de vida, em relação àquele bioma, etc. Então, você tem que, para você mesmo, estar sempre pensando como é que eu estou nesse negócio aqui (risos)? Como é que eu estou nesse projeto? Como é que eu estou nesse filme? E tal. Mas todas as respostas, ninguém tem, ninguém tem nunca.

 

Alan Rios: Maravilha! E a gente está aqui na frente do Torre Palace, que foi o elemento central do documentário “Cadê Edson?”, que trata da desocupação de 2016. Queria aproveitar isso, depois a gente vai falar mais especificamente de cada um dos filmes, mas eu queria aproveitar esse momento para a gente falar sobre a importância de, no cinema, no audiovisual, dar voz às pessoas que são mais impactadas pelas ações da política, pelas ações da estrutura do Estado, qual a importância de ver esse lado, de humanizar e de dar voz a quem é impactado realmente por essas atitudes, por essas ações?

 

Dácia Ibiapina: Eu já vou responder a você, mas eu peço licença para primeiro a gente se virar e olhar para esse prédio e vocês filmam (risos). (Dácia vira a cadeira para o Torre Palace, localizado no fundo do quadro. Dácia está de costas para a câmera. Alan e Júlia também se viram). A gente vai desmontar um pouco esse cenário no sentido de que a gente possa olhar para esse prédio. Eu não quero olhar sozinha para o prédio, eu quero olhar junto com vocês. Então, esse prédio, ele impacta. Ele é um diferencial nessa Esplanada, aqui é o Setor Hoteleiro e tem esse prédio aí. Que prédio é esse? Então, eu tive a oportunidade de fazer um filme, o “Cadê Edson?”, que esteve aqui quando esse prédio foi ocupado, esteve aqui quando esse prédio foi desocupado e esse prédio, ele é um testemunho de que as pessoas têm o direito de ocupar espaços que não estão cumprindo uma função social para que elas possam ter uma moradia. Então, esse prédio me emociona vê-lo (Dácia fala com voz emocionada) e ver que não está acontecendo nada, não está cumprindo nenhuma função social esse prédio. E as pessoas foram retiradas daí porque esse prédio não poderia ser ocupado por elas. (Dácia, Alan e Júlia voltam para a posição que estavam inicialmente, virados para a câmera) Então, eu acho que tem pessoas que a gente precisa ouví-las e o documentário pode ser um caminho para a gente ouvir essas pessoas que talvez a gente não ouvisse, né?

 

Júlia Rios: Dácia, entrando agora na sua filmografia, mas ainda sem perguntar dos filmes específicos, a gente consegue notar que você tem recorrência de algumas temáticas. Então, você tem filmes de memória, da luta dos movimentos sociais, também tem filmes sobre o cinema propriamente. E aí você tem filmes muito políticos em que você está sempre em ação direta também, né? Você está no meio da luta, no meio do movimento. Aí eu queria te perguntar sobre essa sua visão de direção mesmo, de ter sempre um lado bem definido, um ponto de vista claro do filme que você está fazendo. E sobre essas recorrências temáticas também na sua filmografia.

 

Dácia Ibiapina: As recorrências temáticas, elas existem, às vezes, muito naturalmente. Por exemplo, quando eu estava fazendo “Ressurgentes”, os meninos me chamaram para ir para uma ocupação dos sem teto e, ali, eu encontrei um outro filme que é o “Cadê Edson?”. Por exemplo, filme sobre cineasta, eu fiz um Doc TV sobre o Vladimir Carvalho e uma das coisas que eu queria nesse documentário era mostrar ele filmando no Nordeste, lá na terra dele. Então, a equipe do Doc TV foi, para filmar o Vladimir filmando, fazer um making of do Vladimir filmando. Aí, lá, eu conheci um senhor chamado José Ribeiro Medeiros e eu acabei fazendo um curta com ele, que é o “CinemaEngenho”. Então, a pessoa que apareceu pra mim quando eu estava trabalhando numa outra coisa, num Doc TV sobre o Vladimir, eu descobri o Zé Ribeiro Medeiros e a importância que o cinema tem na vida daquele sujeito, daquele homem. Ele já é falecido, mas dizem que a família dele fala que o nosso filme foi muito importante para o processo de envelhecimento e adoecimento que ele estava vivendo. E, depois que o filme ficou pronto, eu fui lá, mostrei para ele e ele sempre falava: “Esse é o meu filme”. Aí disse que quando ele tava acamado, ele ficou acamado antes de morrer na casa de uma filha em João Pessoa e tinha uma televisão e eles passavam o filme para ele ver e aí disse que quando ele estava muito deprimido, eles falavam: “Pai, você quer o quê?” Ele falava “Quero ver meu filme”. Aí passava o filme para ele e dizem que ele morreu vendo o filme (Dácia conta com voz de choro). Então, são essas histórias.

 

Júlia Rios: Que especial, né? Muito especial.

[Música Instrumental]

 

Alan Rios: Dácia, já que a gente citou alguns filmes que você fez, a gente quer falar especificamente de alguns deles. Você tem três longas, sete curtas, um Doc TV e agora a gente vai falar de alguns bem emblemáticos, né, Júlia?

 

Júlia Rios: Isso. Vamos começar pelo seu primeiro aqui, que é “O pagode de Amarante”, de 1984. Ele é um curta documental que está disponível hoje na Embaúba Play. Foi um filme realizado em Super 8 pelo grupo Mel de Abelha. Ele foi premiado com o Troféu Cidade de São Luís na Jornada Maranhense de Cinema Super 8.

 

Alan Rios: Exatamente. Para quem não viu, como é que você pode contar sobre esse filme?

 

Dácia Ibiapina: Eu recomendo que veja no Embaúba Play (risos). Sim, o que eu posso dizer é que foi o meu primeiro filme que eu assinei como direção, porque a gente também fazia uns filmes no Mel de Abelha e assinava coletivamente. Mas esse eu quis assinar como diretora, porque é um filme que acontece numa cidade, a cidade de Amarante no Piauí, e, perto da cidade de Amarante, tem o Quilombo Mimbó. Perto, assim, perto até onde pode ser perto um quilombo do centro da cidade colonial. Então, o pessoal do Mimbó, algumas famílias vinham para Amarante, para a cidade, para os filhos estudarem, e daí eles iam para o mesmo bairro que ficava em cima de um morro. Então, era um morro que tinha uma população negra, quilombola, que vinha porque os filhos queriam estudar, precisava estudar e tal. Então, eu gostei muito de conhecer esse pessoal na época e aí eu decidi fazer esse filme com eles. Aí voltamos para Teresina e nos organizamos para fazer “O Pagode de Amarante” e, nessa época, a gente não tinha grana nenhuma para fazer esses filmes, a não ser o nosso crédito educativo, o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) da época, a gente pegava o dinheiro e aplicava para fazer esses curtas Super 8 (risos). Tudo intuitivamente, assim. Foi muito bom. Então, enfim, é um filme que eu gosto muito. Eu acho muito bonito. E, atualmente, eu estou fazendo um retorno que eu também estou trabalhando em quilombos.

 

Alan Rios: Ah, que maravilha. A gente vai perguntar sobre os projetos futuros mesmo.

 

Júlia Rios: Mas legal que você está agora, depois de vários filmes, está voltando para o quilombo, sendo que foi seu primeiro filme. Isso é interessante.

 

Dácia Ibiapina: Curioso, né? Não foi premeditado, aconteceu.

 

Júlia Rios: É um ciclo. E como que as produções do grupo Mel de Abelha te encaminharam para a trajetória que você tem hoje como cineasta?

 

Dácia Ibiapina: Eu acho que, como a gente trabalhava o Super 8 muito próximo ao Cineclube Teresinense, que era de franciscanos, o nosso diretor era o padre Carlos Bresciani, que era um italiano. Então, era neorrealismo na veia o tempo inteiro. Eu acho que isso foi me formando também. Depois, quando fomos fazer os primeiros filmes lá do Mel de Abelha, era tudo documentário. Então, acho que isso teve uma influência.

 

Alan Rios: Vamos passar para 98?

 

Júlia Rios: Vamos. Próximo filme, “Palestina do Norte, O Araguaia Passa Por Aqui” de 1998. É um curta documental apoiado pelo MinC (Ministério da Cultura) no concurso nacional de curta-metragem. Recebeu o “Melhor Curta Documentário” no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e no Festival É Tudo Verdade, Troféu Tesourinha de Júri Popular, no Festival Internacional de Curtas de Brasília. “Melhor Filme” pela região Centro-Oeste, Norte e Nordeste e pelo júri popular do Festival de Cinema Feminino em Cuiabá. Também recebeu menção honrosa no Cine Tamoio, no Rio de Janeiro, e o prêmio do Canal Brasil de Incentivo ao curta-metragem. Foi selecionado em pelo menos outros 16 (dezesseis) festivais percorrendo a América do Sul e a Europa.

 

Alan Rios: Falo um pouquinho sobre esse filme pra gente? (risos)

 

Dácia Ibiapina: Eu estava fazendo um trabalho em Belém, na Universidade Federal do Pará, e conheci um pessoal que tinha um projeto que se chamava "Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense". Aí, eu fiz umas amizades lá e me apaixonei muito por Belém, pelo Pará e pela Amazônia. Junto com eles, a gente percorreu o Rio Amazonas, de Belém até Santarém. Eu conheci esse pessoal e uma amiga minha me contou das histórias da guerrilha que ela, uma amiga de lá do Pará, que ela conhecia um pessoal que tinha essa memória da Guerrilha do Araguaia lá no Pará. Eu falei: “Mas que interessante”. Aí fui pesquisar um pouco. Eu li bastante sobre a Guerrilha do Araguaia, alguns livros, e tinha uma coisa que me intrigava profundamente, porque todo mundo que foi lá fazer filme, até então, foi lá fazer livro, foi lá fazer tese, foi lá fazer dissertação de mestrado, foi fazer pesquisa, ninguém queria saber o que o povo de lá passou na época da Guerrilha do Araguaia. Ninguém. Aí, “Ah, chegou o pessoal aí que quer saber da guerrilha”, aí: “Ah, manda na casa da Dona Raimunda”, aí chegava lá, falava: “Dona Raimunda, a gente está pesquisando a Guerrilha do Araguaia. A senhora conheceu o Genuíno por aqui? A senhora conheceu o Osvaldão? A senhora conheceu a Dina?” Eram as pessoas que eram da militância política guerrilheira que eram das universidades em geral, que foram pra lá fazer a guerrilha. Então, essas pessoas é que, depois, as famílias conseguiram se ressarcir, ser indenizadas. Ainda bem, né? Muito justo que as famílias tenham sido indenizadas, mas as pessoas de lá não foram indenizadas, não ficaram conhecidas. Aí eu fui e falei: “Eu quero ir lá ouvir essas pessoas de lá que essa minha amiga me apresentou”. Aí eu fiz o projeto. Engraçado, né, na pesquisa eu só entrevistei homens. O que eles passaram? Eles foram presos, eles foram torturados, tiveram que dormir no curral, não sei o quê. Aí, quando eu consegui o recurso do MinC (Ministério da Cultura) para fazer esse filme que eu fui, foi rodado em película esse filme, 16 milímetros. Aí, quando a gente chegou lá, aquelas entrevistas que eu tinha conseguido com aqueles homens, quando eles viram, chegou uma van com câmera, tripé, uma equipe, não sei o quê, iluminação, tudo isso, aí eles falaram: “Não, eu contei isso, mas eu... Eu não conto olhando pra câmera, nem pensar, não conto de jeito nenhum”. Aí eu fiquei: “Caramba, e agora?”. Aí, eu falei: “Vou falar com as mulheres desses caras”. Fui atrás daquelas senhoras. Aí eu descobri também o movimento de quebradeiras de coco. O filme é feito só com depoimentos de mulheres. Ficou lindo isso, assim, porque a guerrilha contada pelas mulheres que tiveram os maridos envolvidos na guerrilha e não pelos maridos. Aí virou um filme que tem um “quê” de feminismo, né? Eu gosto muito.

 

Júlia Rios: Dácia, tem uma coisa que eu fiquei muito curiosa para te perguntar porque nesse filme você faz uma reconstituição histórica pela memória das senhoras e muitas são viúvas. E uma das entrevistadas, ela até fala que ela tem medo de falar sobre isso, muito tempo depois desse acontecimento. Como é para você conduzir essas entrevistas em que as pessoas têm que falar memórias traumáticas, sensíveis?

 

Dácia Ibiapina: A gente precisa criar um ambiente de confiança a tal ponto que a pessoa se sinta à vontade para compartilhar isso porque é importante também para a gente lidar com os traumas, a gente expor o trauma, contar o que aconteceu. Então, essa contação é curativa também, né? Então, às vezes a pessoa tá esperando uma oportunidade, às vezes ela nem pensou que ia contar, mas contou. E aí você tem que pedir autorização para montar, mostrar para a pessoa e pedir autorização. A pessoa pode autorizar ou não, claro. 

 

Alan Rios: Nessa questão da humildade que você falou que é tão importante também, eu acho que ela ajuda quando a gente está diante de situações que a gente tem que ter a humildade para se colocar no lugar daquela pessoa, tem que ter empatia. Isso ajuda também nessa construção, né?

 

Dácia Ibiapina: É verdade. Se colocar no lugar do outro é um exercício importante para quem faz documentário.

 

Alan Rios: Vamos para um aqui de Brasília, agora?

 

Júlia Rios: Isso, vamos lá. Vamos falar do “Entorno da Beleza” de 2012, que é um longa documental financiado pelo FAC (Fundo de Apoio à Cultura). Recebeu o prêmio Conterrâneos de “Melhor Documentário” no Festival de Brasília e “Melhor Destaque Feminino Nacional” no Femina, no Rio de Janeiro. Foi selecionado em pelo menos outros três festivais no Brasil e no Festival Internacional de Cinema do Uruguai.

 

Alan Rios: Perfeito, para quem não viu, conta um pouquinho dele pra gente, por favor. 

 

Dácia Ibiapina: Então, esse filme, “Entorno da Beleza”, meu primeiro longa, eu tive o maior carinho e o maior prazer de fazer esse filme. Foi um filme que eu, antes de ganhar o recurso para produzir, eu ganhei um desenvolvimento, então pude desenvolver esse filme. É um filme sobre concursos de miss. Minha ideia era todo filme que faz sobre periferia, no DF (Distrito Federal), é feito por homem, é sobre homem, é sobre violência, é sobre bandido e sobre não sei o quê. Então, aí eu escolhi fazer um filme sobre o concurso de miss pra ter uma oportunidade de mostrar um filme feito por uma mulher com personagens que são mulheres da periferia.

 

Júlia Rios: Dácia, pensando no “Entorno da Beleza”, eu acho que, conceitualmente, a gente viu que você queria abordar a linguagem desse documentário, mais ou menos da forma que os concursos de miss fazem com essas mulheres, que eles tiram as particularidades delas, deixa elas todas parecendo um grupo mais homogêneo. Aí, pensando nisso, assim, nessa proposta, como que era você e a equipe nesse ambiente? Vocês tinham que, por exemplo, talvez ficarem meio invisíveis, sem chamar tanta atenção. Como é que era essa interação?

 

Dácia Ibiapina: Não, a gente conversou e nos acertamos com o diretor do Miss DF na época. Aí, ele era muito vaidoso, né? E ele gostou muito. “Ai, que bom, que lindo! Vai ter um filme e tal.” Então, ele nos apoiou e esse apoio dele foi muito importante no sentido da gente ter acesso a esses lugares, né? Ele era diretor de todo Miss DF, então, se a gente ia para o Recanto das Emas, a gente falava com ele, ele falava: “o Recanto das Emas, vai ter ensaio tal dia tal hora, vocês falam com tal pessoa do colégio tal que o ensaio vai ser lá”. Então, ele nos ajudava muito nesse sentido. Foi isso.

 

Alan Rios: E depois dos filmes, você ouve as histórias de pessoas que com certeza te marcaram. Quando passa, quando o filme já está pronto, já foi exibido e tudo mais, é difícil desapegar dessas histórias? Você sente uma curiosidade anos depois pra saber: “Poxa, como é que tá aquela moça?”. Lembro de uma pessoa que você entrevistou no curta sobre as Miss que ela fala que queria ser psicóloga e tudo mais e isso há mais de dez anos atrás. Também bate essa curiosidade: “Pô, como será que está ela hoje?”. “Será que ela fez o curso?”.

 

Dácia Ibiapina: Você sabe que eu tive a maior vontade de fazer o filme que fosse depois descobrir daqueles sonhos. A gente conheceu um pouquinho. O filme demora pra ficar pronto, aí quando o filme ficou pronto, a gente foi exibir em cada uma das cidades que a gente filmou os concursos. Aí, em algumas delas, a gente ficava sabendo um pouco das histórias das meninas. Então, tem uma que casou, teve uma que foi na exibição do filme de barrigão e com a faixa, coisa mais linda do mundo. Nesse caso, não se criou uma intimidade profunda com essas meninas, como às vezes acontece, né? Mas a gente sente falta, tem curiosidade, sei lá, aquele personagem e tal.

 

Alan Rios: Impossível não sentir falta, né? (risos)

 

Júlia Rios: É um processo tão longo, né? Você fica tanto tempo junto com a pessoa.

 

Dácia Ibiapina: E eu acho que as pessoas também sentem falta da gente. Agora mesmo, a gente estava voltando de uma temporada de gravações e, no dia que a gente se despediu, entrou no carro, o povo tava tudo chorando. (risos)

 

Alan Rios: Vamos falar sobre “Ressurgentes” agora?

 

Júlia Rios: Vamos lá. “Ressurgentes: um filme de ação direta” de 2014. É um longa documental financiado pelo FAC (Fundo de Apoio à Cultura) e que está disponível hoje na Embaúba Play também. Recebeu “Melhor Documentário” pelo júri oficial e pelo júri popular no Cachoeira Doc na Bahia e foi selecionado em pelo menos outros cinco festivais no Brasil e também festivais na França, Espanha e Portugal.

 

Alan Rios: Exatamente. Quem não viu, vá ver, mas conta um pouquinho dele para a gente, por favor. (risos)

 

Dácia Ibiapina: O “Ressurgentes”, eu acho que é um filme que todo mundo que é de Brasília ou do DF deveria ver, porque é um filme de esperança na luta. Persistir na luta e conquistar objetivos, que é diferente do “Cadê Edson?”, né? “Cadê Edson?” o final é um massacre, né? E o “Ressurgentes” não, é um filme de esperança na luta. Então, acho que todo mundo deve ver esse filme. Ele foi feito num momento de luta a gente está filmando em 2013, 2014, 2015. Depois dessa onda, veio uma onda de desesperança. Então, quando as pessoas assistiam o filme, acendia de novo a esperança. Uma vez, a gente passou o “Ressurgentes” ali na UnB (Universidade de Brasília), no auditório da Faculdade de Comunicação. E aí, quando terminou de passar o filme: “Vamos fazer um debate”. Aí um cara falou: “Não vamos fazer debate, não! Vamos para a rua, vamos lutar” (risos).

 

Alan Rios: Ele desperta isso, né?

 

Júlia Rios: É mesmo.

 

Alan Rios: E é muito engraçado, a gente vê a diferença de visão que a gente tem nos filmes em relação ao ano que a gente está. Se a gente ver “Ressurgentes” hoje, é diferente da gente ver “Ressurgentes” em 2014. Principalmente, porque hoje a gente passou por outras manifestações que é muito difícil a gente não fazer aquelas comparações, né? Diferentes manifestações. Por exemplo, 8 de janeiro aqui em Brasília. Em 8 de janeiro de 2023, a gente viu uma manifestação da extrema direita aqui em Brasília, que acabou com a invasão ao Congresso, ao STF (Supremo Tribunal Federal), a vários prédios públicos daqui. E, quando a gente assiste “Ressurgentes” depois de observar essa manifestação, por exemplo, de 2023, a gente consegue fazer umas comparações que levam a várias reflexões. Por exemplo, em “Ressurgentes” tem uma cena que me marcou muito, que é o manifestante de esquerda deitado no chão, com as mãos na cabeça. A cavalaria da PM (Polícia Militar) vem e todo mundo começa a descer o cassetete nele, ele começa a ser agredido, as outras pessoas que estão ali ao redor tentam impedir essa violência. E, no 8 de janeiro, a gente viu uma coisa diferente, numa manifestação da extrema direita que a gente viu a cena da cavalaria da PM sendo todo mundo cercado, aquela PM sendo cercada e o próprio cavalo da PM sendo agredido. Eu queria que você fizesse um pouco dessas reflexões sobre como é diferente ver os filmes em relação ao momento que a gente está passando, o momento histórico, o momento social, o momento político e como você viu essas diferenças também?

 

Dácia Ibiapina: Então, eu acho que uma das coisas que eu penso sobre o meu trabalho é que ele constroi a memória política de alguma forma e, no caso aqui em Brasília, esses dois filmes, o “Ressurgentes” e o “Cadê Edson?”, eles constroem a memória política de um período de uma forma muito forte. Eu espero que as pessoas possam continuar olhando esses filmes e pensando no momento em que eles foram feitos. Atualmente, o que me preocupa é que a gente não tem mais coragem de fazer manifestação, não tem mais manifestação. Só quem tem coragem de fazer manifestação é a extrema direita. A gente não está conseguindo fazer manifestações, porque as últimas manifestações que houveram, que eu nem estava filmando na época, foram muito violentas. Aqui mesmo no DF, teve uma manifestação que teve gente atirando na outra, assim, no meio da manifestação, uma coisa assim. Então, ficou uma coisa inviável, perigosa. Por exemplo, agora aconteceu na França que a extrema direita ganhou numa semana e, na outra semana, ela perdeu. E aquilo ali é “Ressurgentes”, aquela manifestação que teve quando saiu o resultado da eleição na França é “Ressurgentes” completamente. Então, é possível. (Dácia joga as mãos para o alto) Pode ser que ressurjam as manifestações.

 

Júlia Rios: Ainda pensando nessa questão de “Ressurgentes”, você também tem um outro curta que é “O Gigante Nunca Dorme”, que é de 2013. E esses dois filmes, eles abordam o Movimento Passe Livre. Aí, eu fiquei curiosa de saber se você tem um acervo muito grande de materiais que você captou e que, talvez, eles possam ser transformados em diversos filmes diferentes?

 

Dácia Ibiapina: Você tocou numa questão chave, no caso de quase todos os documentaristas, que é o que fazer com os nossos acervos. Porque a gente não tem os recursos necessários para fazer a migração dos formatos. Eu tenho um acervo em mini DV, eu tenho acervo em DVD, eu tenho um acervo em Betacam, eu tenho um acervo em película. Então, para fazer a migração desses formatos para ir atualizando sempre, o ideal agora seria digitalizar tudo num bom padrão de digitalização. Identificar tudo, arquivar tudo. Para isso é preciso dinheiro. E, também, as pessoas acham prepotente uma pessoa como eu dizer que tem um acervo que precisa ser cuidado, que é importante. As pessoas acham que o importante são outros acervos, né?

 

Alan Rios: Vamos falar um pouquinho de “Cadê Edson?”?

 

Júlia Rios: Bora. “Cadê Edson?”, de 2020, é um longa documental financiado pelo FAC. O júri do Fórum Doc BH destacou o filme “pelo tratamento sensível de imagens e sons ao confrontar as construções da mídia hegemônica, pela vigorosa atualização do método da entrevista no cinema, por trazer na montagem as imagens que o poder se esforça em nos ocultar e por criar imagens necessárias que muito nos ensinam sobre a memória dos brasileiros”. Foi um filme selecionado em pelo menos outros 14 (quatorze) festivais, passando pelo Brasil, pela Inglaterra e pela França.

 

Alan Rios: Muito bom. Fala um pouquinho desse filme pra gente?

 

Dácia Ibiapina: “Cadê Edson?” foi um filme que a gente levou muito tempo pra fazer. É um filme que acompanha a trajetória de um militante político, o Edson (Francisco da Silva). Eu conheci o Edson muito tempo antes do episódio daqui, eu conheci ele fazendo ocupação lá em Ceilândia, num terreno. Eu vi que era um cara que tinha um jeito de fazer ocupação, um jeito de lidar com as pessoas que não tem casa, um jeito de lidar com a polícia, um jeito de lidar com o poder público. Aí eu comecei a me interessar muito por ele. Eu fui pra lá, assim, tava fazendo o “Ressurgentes” com os militantes do Movimento Passe Livre, do Movimento Estudantil, da UnB, etc, etc. Aí eles me convidaram, eles falaram: “Dácia, depois de amanhã, vai acontecer uma ocupação. A gente está sabendo porque a gente coordena isso junto com o MTST”, que na época era o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra). “Aí, a gente tá te falando porque a gente quer que você vá com a gente para a gente filmar a noite da ocupação”. Eu falei: “Beleza". "Você não pode falar pra ninguém." "Beleza, então, eu vou chamar duas pessoas para fotografia, duas pessoas para o som. Mas eu vou dizer que a gente vai fazer uma filmagem noturna que eu não posso saber ainda onde vai ser tal”. Aí a gente foi. Foi incrível essa noite e, a partir do dia seguinte, o pessoal que tinha me convidado, do Passe Livre, os militantes que tinham me convidado, esqueceram. Mas eu fiquei tão fascinada que eu voltei pra lá no dia seguinte e no dia seguinte e no dia seguinte. Então, eu fiquei acompanhando aquela ocupação que durou, se não me engano, 21 dias. Ela aconteceu na noite do aniversário de Brasília e ficou lá um tempo. A primeira parte do “Cadê Edson?”, é eu ficar lá acompanhando a ocupação, entrevistando as pessoas, entrevistando o Edson. E daí eu descobri que o Edson é uma pessoa avançadíssima politicamente. Ele tem uma visão de mundo, ele tem uma visão de quem ele é. Ele tem uma visão sobre a política partidária. Tem coisas que ele fala no filme, que estão no filme e a gente vê acontecer. Ele teve várias etapas na luta dele, na vida dele, casamentos, filhos, prisão. O Edson passou três meses, ele e mais dois personagens do filme, passaram três meses presos na Papuda, apanhando, sendo torturados e tudo. Então foi um filme muito difícil, mas eu acho muito importante. E eu acho que, esteticamente, a gente tem um ganho enorme quando os helicópteros ficam sobrevoando aqui o “Torre Palace". Nesse momento, esses helicópteros e a circunstância toda é filmada com drones. A gente conseguiu esse material que deu uma sequência muito bonita no filme, como os drones não trazem áudio, a gente colocou o berimbau do Naná Vasconcelos, da música “AfricaDeus”, que casou muito bem, que ficou muito bonito. Esteticamente, essa sequência é muito bonita, embora seja uma sequência de violência. E essa ideia de botar o berimbau é porque eu assisti a desocupação aqui do setor hoteleiro, sem equipe, sem nada e eu vi que as pessoas dos hoteis, bem cedo, 06h da manhã, então vinham as pessoas com os sacos de lixo dos hotéis, depositar o lixo, limpar, não sei o quê, trabalhadores que estavam fazendo seu trabalho de limpar os hotéis logo cedo, eles pararam e ficaram assistindo. E daí eles falavam entre eles. Eles estavam torcendo pelos militantes (Dácia fala com voz emocionada). Então, uma coisa, assim, muito forte essa solidariedade do trabalhador com o trabalhador, com o militante que não tem casa, etc, etc. Então, acho isso incrível. Naquele momento, que eu estava assistindo junto com esse povo e ouvindo eles, e ouvindo os helicópteros e vendo aquela coisa toda, eu pensava: “Isso aqui é Guerrilha do Araguaia, isso aqui é Canudos, isso aqui é Caldeirão, isso aqui é o massacre do povo negro brasileiro, do povo pobre brasileiro acontecendo aqui na nossa frente”. Aí eu levei isso pra montagem, edição de som e aí foi o Guile (Martins) que fez a edição de som desse filme e eu falava pra ele: “Guile, eu quero marcar isso aqui como sendo Canudos. Tem alguma coisa de perseguição ao povo negro nesse momento no filme”. Aí ele: “Tu pensou Canudos, mas tu pensa o que?”. Eu falei: “Eu penso as armas do povo preto, é berimbau”. Aí ele se lembrou dessa música do Naná Vasconcelos que chama “AfroDeus” e aí, ele conseguiu editar essa sequência com esse berimbau que é maravilhoso. Eu acho uma sequência incrível e cumpriu o meu desejo que tivesse algo de Canudos naquilo.

 

Alan Rios: Fazendo outra reflexão sobre essa ocupação, também, sobre essa ocupação e desocupação, o momento da desocupação, ele foi retratado nos jornais. Só que existe uma diferença muito grande quando a gente vê.

 

Dácia Ibiapina: Gigantesca.

 

Alan Rios: Gigantesca, quando a gente vê a forma como a imprensa tradicional faz a cobertura de um evento como esse e a forma como o cinema documental faz a cobertura de um evento como esse. Na sua visão, o jornalismo, ele peca muito quando ele vai tratar dos temas que são relacionados àquela população financeiramente mais vulnerável, aquela população que é mais pobre, aquela população que é da periferia? E, se peca, como que a gente pode trazer novas reflexões e trazer novos caminhos para que não peque tanto?

 

Dácia Ibiapina: Eu acho que a gente não pode generalizar que toda cobertura jornalística favorece as pessoas que têm poder, que tem dinheiro e desfavorece as pessoas pobres e que precisam de ajuda, etc. Então, a gente não pode generalizar, mas o jornalista, ele não tem o tempo necessário que eu, como documentarista, tenho para interagir, para acompanhar, para seguir no dia a dia o que está acontecendo. Então, acho que isso faz uma diferença e tem aquela diferença básica sim, que você sabe que a grande mídia está a serviço do grande capital. Se você fizesse o que eu fiz com essa desocupação numa TV, você talvez fosse demitido, né? Então tem essa questão financeira, o poder do capital e a relação do jornalismo com o poder do capital. E tem o cinema independente, documentário, que é esse que eu faço. Mas, para fazê-lo, eu preciso também ganhar o FAC (risos), ganhar a Lei Paulo Gustavo, ganhar a Lei Aldir Blanc, porque senão, com o meu salário de professora aposentada, eu não dou conta de fazer essas coisas.

 

Júlia Rios: Dácia, vamos seguir agora falando de uma maneira mais ampla de outros três filmes seus que falam sobre o cinema. Então, você tem o longa documental sobre o cineasta Vladimir Carvalho, que o título é esse, né? “Vladimir Carvalho: conterrâneo velho de guerra” de 2005, você tem o curta sobre o José Ribeiro de Medeiros, que projetava filmes no interior da Paraíba, que é o “Cinema Engenho” de 2007 e você também tem o premiado curta “Carneiro de Ouro” que é de 2017, sobre o Dedé Rodrigues, que é esse cineasta de filmes trash. Qual é a importância para você de fazer esses filmes que falam sobre o cinema e também de falar de outros modos de produção, esses modos de produção mais independentes, um outro tipo de cinema?

 

Dácia Ibiapina: Eu, como cineasta, tenho muita curiosidade sobre o cinema em geral e também tenho essa curiosidade do modo de produção. Então, o modo de produção que eu faço é isso que a gente está falando aqui e falando desses filmes, mas existem outros modos de produção. E o do Dedé Rodrigues me chamava muito atenção porque ele é fascinado pelo cinema de fantasia, de ação, de super-heróis e tal e, ao mesmo tempo, de efeitos especiais. Aí, me chamava muito a atenção e eu falei: “Eu quero entender como é que funciona esse rolê do Dedé Rodrigues”. Aí eu fui e ele me mostrou que ele é genial, ele estuda aqueles programas na internet, baixa os programas, estuda e vai fazendo. Atualmente, ele tem montado muitas pequenas coisas em TikTok. Ele gosta de tecnologia, de novidades e tal. É o contrário de mim, né? Aí tem o Dedé, aí tem o Vladimir. Quando eu vim para Brasília, o Vladimir tinha se aposentado na UnB. E, no cineclubismo, eu conheci muito a obra do Vladimir Carvalho, principalmente, o filme “O País de São Saruê” que passou dez anos preso na censura, sem poder ser exibido. Aí lá no nosso cineclube, lá no Piauí, a gente fazia passeata, fazia faixa, fazia abaixo-assinado. No Brasil todo, a gente fazia essas coisas para liberar o filme do Vladimir, o “O País de São Saruê”. Então, quando eu vim trabalhar na UnB, ele foi professor da UnB. Então, eu me senti com vontade de fazer um documentário sobre ele. Aí, eu falei com ele e ele disse “Olha, tem um monte de gente aí que diz que vai fazer um documentário sobre mim, mas ninguém nunca fez. Então, se você quiser fazer a gente vê, vambora”. Aí, tinha o edital do Doc TV, que era um edital na TV pública. Aí eu fiz o projeto, ganhamos e fiz o documentário do Vladimir, aí fazendo o documentário do Vladimir eu conheci o José Ribeiro Medeiros, que era exibidor de filmes no interior da Paraíba. Aí também achei ele incrível, o filme que eu fiz sobre ele é a partir da fantasia dele de fazer um velho projetor funcionar, passar um filme num velho projetor. Que ele não consegue, né?

 

Alan Rios: Bacana.

 

Júlia Rios: É legal que um filme liga o outro também, você tem um encontro para um filme, aí você descobre uma personalidade muito legal que vai levar ao outro filme. É super legal isso.

 

Alan Rios: Exatamente, já que a gente está falando sobre os seus projetos, o que a gente pode esperar daqui pra frente? O que vem por aí?

 

Dácia Ibiapina: Então, eu estou, no momento, finalizando um curta que foi feito com o Antônio Bispo dos Santos sobre a vida dele, a trajetória dele. Então, ele é um quilombola, ele ficou muito em evidência nos últimos anos, desde a pandemia cresceu muito a venda dos livros dele, os convites, as lives. Então, ele tem um pensamento muito avançado sobre o mundo, sobre os biomas, sobre essa questão climática, ambiental, etc. Vocês conhecem? Já viram alguma coisa dele?

 

Júlia Rios: Não conheço.

 

Dácia Ibiapina: Então pesquisem: “Nêgo Bispo”. Eu conheci ele aqui em Brasília, a gente se encantou e resolvemos que a gente queria fazer um filme, um documentário lá no quilombo dele, que fica no Piauí, Saco do Curtume, zona rural de São João do Piauí. Então, eu estava fazendo esse filme e quando foi no dia 3 de dezembro de 2023, ele fez a passagem. Aí fiquei com esse material e estou trabalhando para fechar esse filme. É uma homenagem a ele, a família dele e ao pensamento dele e estamos trabalhando.

[Música Instrumental]

 

Alan Rios: Dácia, a gente tem outro momento aqui do nosso podcast, que é o momento das perguntas mais rápidas de bate e volta. Então, a gente vai fazer algumas perguntas rapidinhas para respostas rapidinhas também, tá bom? Primeiro, já que a gente está falando sobre homenagem, eu queria saber que cineasta do DF você citaria como homenagem.

 

Dácia Ibiapina: Adirley Queirós.

 

Júlia Rios: Legal. E que livro que você recomenda sobre direção?

 

Dácia Ibiapina: Tem muitos livros e, como eu trabalho com direção de documentário, eu recomendo os textos do Fernão Ramos sobre documentário, especialmente um que chama “A Cicatriz da Tomada”, é um texto que aborda a questão de quem faz a câmera. A gente sempre fica preocupado quem dirige, não sei o quê, quem está na frente da câmera, mas quem faz a câmera numa situação dramática como a que aconteceu nesse prédio aqui, essa pessoa recebe um impacto muito forte. Então, “A Cicatriz da Tomada” é: “O que fica em quem faz a câmera em situações como essa que tem nesse filme?”. Então, eu tenho essa cicatriz. Vocês podem ver que eu já manifestei aqui essa cicatriz, mas o pessoal que faz a câmera, geralmente, não tem essa oportunidade então esse texto aborda essa questão. 

 

Alan Rios: Muito interessante. E que filme do DF que já existe que você gostaria de ter feito? Não precisa ser necessariamente daqui.

 

Júlia Rios: É mais geral mesmo.

 

Dácia Ibiapina: Ah, tem tanto filme que eu gostaria de ter feito. Por exemplo, o “Cabra Marcado para Morrer”, do Eduardo Coutinho. Eu gostaria de ter feito aquele filme. Eu gostaria de ter feito o filme “Conterrâneos Velhos de Guerra”, de Vladimir Carvalho.

 

Júlia Rios: E que filmes do DF que te marcaram?

 

Dácia Ibiapina: “Mato Seco em Chamas”, do Adirley (Queirós) eu acho um filme que me marcou muito. Aquela coisa do descobrir o petróleo e tudo, a forma como é abordada a questão dos evangélicos nesse filme, eu acho muito bonito.

 

Alan Rios: E Dácia, tem outra dinâmica que a gente tem aqui. Infelizmente, a gente está chegando ao final e tem ela para a gente encerrar, só que encerrar de uma forma cíclica. A gente tem umas perguntas que são feitas dos nossos próprios entrevistados para os entrevistados, e a gente tem uma pergunta que foi feita pra você, da Edileuza (Penha de Souza), né Júlia?

 

Júlia Rios: Isso! Dácia, a Edileuza, uma das nossas entrevistadas, ela quer saber o que te inspira e como é o processo de criação dos seus filmes? Aí, ela também tem uma curiosidade de se agora que você está aposentada da UnB, tem sido mais fácil fazer os seus filmes?

 

Dácia Ibiapina: Bom, começando pela última pergunta, tem sido mais difícil, porque agora tem uma questão de etarismo, assim: “Ah, ela já fez muito filme, já ganhou muito edital, agora tem que dar oportunidade pras outras pessoas.”. Então isso torna a minha situação mais difícil. Tá muito difícil para mim ganhar qualquer edital público, então isso é uma questão. O que me inspira? Ultimamente, eu estou muito impactada por essa questão dos biomas, da crise climática. Eu fico pensando que, nesse momento, a gente que faz cinema deveria começar a debater essas questões para ver se a gente acha um jeito de contribuir para diminuir a devastação, sei lá, alguma coisa assim. Eu, ultimamente, penso muito nisso, da questão dos biomas, dos rios, da poluição dos mares. Eu acho que a gente vai desaparecer, mas a gente poderia aprender alguma coisa antes de desaparecer completamente (risos). E eu acho que o cinema poderia ajudar nisso. Eu penso nisso.

 

Alan Rios: E agora é a sua vez de fazer a pergunta, que pergunta, Dácia, que você faria para o Iberê Carvalho?

 

Dácia Ibiapina: Então, eu queria perguntar ao Iberê quais são os projetos que ele está tocando agora e quais são os próximos projetos que ele pretende realizar? O que está mexendo com ele agora? E para fazer qual tipo de filme?

 

Alan Rios: Também queremos saber. E, Dácia, como é que as pessoas podem acompanhar seus próximos trabalhos? Saber o que você está fazendo.

 

Dácia Ibiapina: Assistindo ao Podcast Respiro (risos).

 

Alan Rios: Você não é muito de rede social, então, né?

 

Dácia Ibiapina: Não, não sou muito de rede social não, mas se vocês botarem o meu nome na internet, vocês vão achar muitos links, muitas coisas.

 

Alan Rios: Dácia, tem alguma coisa que a gente não comentou, alguma pergunta que a gente não fez? Você quer fazer alguma consideração final?

 

Dácia Ibiapina: Não, acho que já falei demais, já chorei demais (risos). Não, quero só agradecer a oportunidade de estar com vocês tomando sol aqui.

 

Júlia Rios: Pegar um bronzeado.

 

Alan Rios: Exatamente, a gente que agradece, Dácia. Muito obrigado pela oportunidade de compartilhar tanta vivência com a gente. Muito obrigado por compartilhar tudo isso com quem está acompanhando também do outro lado ali. Para a gente, foi uma honra e para quem está do outro lado, tenho certeza que também. Obrigado. Júlia, é isso, né?

 

Júlia Rios: Isso, Dácia. Com certeza acho que vai ser muito inspirador pra quem está escutando. A gente fica muito inspirado em te ouvir também. Foi um prazer. Queria agradecer que você está aqui e comprimentar a sua trajetória, que é muito legal, e muito importante e muito potente também. Muito obrigada!

 

Dácia Ibiapina: Obrigada.

[Música Instrumental]

 

Júlia Rios: Este podcast é uma realização da Respiro Filmes, com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal e da Secretaria de Cultura. Com pesquisa, roteiro e apresentação por Júlia Rios e Alan Rios. Direção, captação de áudio, edição e mixagem de som por Luiza Chagas. Produção de Heloísa Schons, captação de imagem por Gabriel Machado, da Ada Audiovisual, e trilha por Pratanes. Muito obrigada por escutar!

 

Alan Rios: Obrigado e, olha, siga a gente nas redes sociais, no Instagram @respiro.filmes e segue a gente lá, Respiro Filmes no YouTube também, se inscreve e deixa aquele joinha. E é isso. Até a próxima. Obrigado. Tchau, tchau.

 

Júlia Rios: Até o próximo episódio, tchau.

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