3º EPISÓDIO - EDILEUZA PENHA DE SOUZA
SOBRE EDILEUZA PENHA DE SOUZA
Edileuza Penha de Souza cresceu em Vitória, Espírito Santo. É Professora, Cineasta e Pesquisadora. Historiadora de formação, Doutora em Educação e Pós-doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília. Foi estudante da EICTV - Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. É a idealizadora e coordenadora da Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio. Atua na curadoria e no júri de mostras e festivais nacionais e internacionais. Dirigiu os filmes Vão das Almas (2023), Filhas de Lavadeiras (2019), Mulheres de Barro (2015), Sem Limites (2013), Um Peso por um Chiste (2013) e Conta-Contos a arte de ouvir e contar histórias (2010).
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https://www.instagram.com/sebastianamidiaseproducoes/
INFORMAÇÕES
Este episódio foi gravado em 09/07/2024.
FICHA TÉCNICA
Realização e Produção: Respiro Filmes.
Roteiro, Pesquisa e Apresentação: Júlia Rios e Alan Rios.
Direção, Captação de Áudio, Edição e Mixagem de Som: Luiza Chagas.
Ideia Original e Produção: Heloísa Schons.
Produção Executiva: Bruna Lopes e Arthur Lima da Iroko Projetos.
Captação de Imagem: Romulo Aires da Ada Audiovisual.
Trilha: Pratanes.
Agradecimento: Casa Akotirene - quilombo urbano, organização de mulheres negras.
Supervisão Artística: Júlia Rios e Luiza Chagas.
Edição de Cortes: Pupila Audiovisual e Fernanda Coutinho.
Gestão de Redes Sociais: Babi Pinheiro.
Transcrição e Legendagem dos Episódios: Vini Moreira e Anyelle Amarante.
Criação de Identidade Visual e Criação da Logo: Rodrigo Camargos.
Ilustração do Copo da Temporada: Daniel Freitas.
Este projeto foi realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal.
TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIO
Alerta de Conteúdo Sensível: Este episódio contém menção a violência sexual. Recomendamos que seja ouvido com cautela.
Júlia Rios: Antes da gente chamar nossa convidada, gostaríamos de te apresentar a locação de hoje. A gravação aconteceu na Casa Akotirene, um quilombo urbano que dialoga com a vida e obra da nossa entrevistada. Além de ter sido um local de exibição do documentário “Filhas de Lavadeiras”, dirigido por ela. Bora conhecer nossa convidada.
[Música Instrumental]
Alan Rios: Oi, gente, este é o Podcast Respiro Filmes, um podcast sobre cineastas do Distrito Federal. Estamos no Spotify, Deezer e também no YouTube. Eu sou o Alan Rios.
Júlia Rios: Eu sou a Júlia Rios.
Alan Rios: E essa é a temporada de direção. E hoje, a gente tem o prazer de receber Edileuza Penha de Souza. Edileuza, muito obrigado por ter vindo conversar com a gente.
Júlia Rios: É um prazer, Edileuza!
Edileuza Penha de Souza: Eu que agradeço!
Alan Rios: Olha, a gente vai fazer um breve resumo aqui da sua história, Edileuza, e depois a gente vai começar nossa conversa. A Júlia fez uma minibiografia, porque sua biografia é muito grande, a gente vai dar uma resumida mas depois a gente vai entrando um pouco mais.
Júlia Rios: Isso! Então, vamos lá. Edileuza Penha de Souza cresceu em Vitória, Espírito Santo. É professora, cineasta e pesquisadora. Historiadora de formação, doutora em Educação e pós-doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília. Foi estudante da EICTV, Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños, em Cuba.
Alan Rios: Isso! E é idealizadora e coordenadora da Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio. E atua na curadoria e no júri de mostras e festivais nacionais e internacionais.
Júlia Rios: E a sua produtora se chama Sebastiana Mídias e Produções. Edileuza, a gente falou aqui da sua biografia mais técnica, mas a gente queria muito saber: quem é a Edileuza Penha de Souza? Como que talvez sua família, seus filhos ou outros amigos te definiriam?
Edileuza Penha de Souza: Bom, eu sou uma mulher negra, mãe e avó. Cresci em uma família interracial e uma família de muito afeto. Talvez por ter crescido em uma família pobre, mas de pais trabalhadores. Minha mãe lavadeira, meu pai militar e com minha avó paterna sempre muito presente em nossas vidas. Uma família numerosa, uma família que também por morar na cidade, entre aspas né? Bom, eu sou capixaba, hoje eu digo que eu sou “capixandanga”, já que adotei Brasília como minha cidade, enfim. Mas Vitória é uma ilha e, por morar na capital, os meus pais recebiam muitos tios, parentes que vinham do interior para ir ao médico, para resolver qualquer questão era sempre na cidade. Então, eu não lembro de nenhum momento a minha casa somente eu meus pais e meus irmãos, a casa estava sempre muito cheia. Talvez por isso eu tenha tido e adotado tantos filhos, também nessa de ter uma família numerosa e de ter muitos amigos. Enfim, acho que essa sou eu.
Alan Rios: E, profissionalmente, o que a gente pode falar sobre a cineasta Edileuza?
Edileuza Penha de Souza: Eu iniciei minha carreira profissional trabalhando no comércio, que era algo que eu detestava. E aí, durante mais da metade da minha vida, eu fui professora e atuei desde o ensino básico até o ensino superior, que é onde eu atuo atualmente. Venho para Brasília para trabalhar com a implementação da lei 10.639 em 2005 no Ministério da Educação e é aqui também que começa a minha vida no cinema. Eu sempre usei o cinema como instrumento didático. Cinema para mim sempre foi um lugar de refúgio. Os primeiros filmes que eu assisti na minha vida… Meus tios, que eram meus padrinhos também, moravam no Ibes, que é um bairro de Vila Velha no Espírito Santo, e tinha um cinema que era o Aterac. E aí eu e os meus primos vendíamos latinha, papel para poder ir para o cinema nas tardes e nos finais de semana. Isso sempre nas férias, sempre passava as férias com meus primos na casa de meus padrinhos e eu achava aquilo muito fascinante. Depois, já adulta, trabalhando no comércio no centro de Vitória, eu trabalhava exatamente em frente a um cinema que era o Cine Paz. E era uma época em que o filme ficava muito tempo em cartaz, muito tempo, eu acho que uns 15 dias, talvez um pouco mais, e tinha muitas sessões, várias sessões do mesmo filme. Não tinha dois filmes, não tinha… não, era um único filme. Então, ser amiga da moça da portaria também facilitava a entrada e aí eu via o filme em pedaços, assim, hoje vi um pedacinho, aí na outra folga via mais um pedacinho, então às vezes eu demorava até mais de uma semana para poder ver o filme inteiro. Mas isso era possível por conta disso, de ter várias sessões em vários horários com o mesmo filme. Bom, cresci me tornei professora, nesse interim passei no vestibular e na Universidade Federal da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), é quando também iniciei a minha carreira enquanto professora, e sempre usei o cinema, o filme como instrumento didático e aí acho que muito por conta disso surgiu a coleção “Negritude, Cinema e Educação” (coleção de livros que analisa filmes nacionais e internacionais para promover a implementação da Lei 10.639/03 nas escolas.), que foi possível já aqui em Brasília, embora seja uma editora de Belo Horizonte, eu acho que a coleção “Negritude, Cinema e Educação” vem desse lugar de usar os filmes que eu já usava em sala de aula.
Júlia Rios: Que legal! E aí pensando nisso ainda um pouco, eu queria saber quais são as suas principais referências? O que te inspira? Pode ser num geral, nas artes em geral, pode ser no cinema.
Edileuza Penha de Souza: Então, muita coisa inspira, muita gente também me inspira. Eu gosto muito, por exemplo, de “Café com Canela”, acho que é um dos meus filmes favoritos, porque é um filme que respira afeto e eu tenho dito que eu quero fazer filmes de amor, porque acho que o amor, o afeto é algo muito caro para nós negros e no cinema mais ainda porque o cinema é espelho dessa sociedade racista excludente que a gente vive. Então, trazer para a tela grande filme de amor, falando de afeto e de afeto negro é muito desafiador. Nas artes, muita gente me inspira, nas artes plásticas, falaria do trabalho do Dalton de Paula, do Yhuri (Cruz), mas enfim, tem muita gente, citar nomes é algo muito ruim porque você sempre acaba esquecendo alguém. Adoro o trabalho da Renata Diniz, do Marcus (Azevedo) e do Victor, do Bruno Victor, gosto muito do trabalho da Dácia (Ibiapina), enfim...
Júlia Rios: Edileuza, pensando nessa reflexão ainda, eu queria saber como é para você impactar tanta gente com a sua arte, porque, por exemplo, a gente sabe que você impacta muito positivamente as gerações mais novas de cineasta. A gente sabe, por exemplo, que você foi a homenageada do ano na quinta Mostra de Cinema Negro de Sergipe. Queria saber como que é para você poder impactar tanta gente com a sua arte?
Edileuza Penha de Souza: Sei não. (risadas) Eu acho que a gente só sonha com aquilo que de alguma forma a gente sabe que existe né? Dê sonhos à população negra e teremos um outro mundo. Então, acho que é desse lugar de sonhar que um outro mundo é possível, que um mundo mais justo, mais igualitário… Sim, é possível. E aí, se essa possibilidade está muito longe de nós, o que cada um de nós pode fazer? No seu mundo, na sua casa e com seus amigos, com seus alunos, sabe? Porque, se a gente conseguir mudar a nossa casa, de repente a gente consegue mudar nossa rua, nossa sala de aula e aí vai crescendo. Acho que é uma bola que vai ampliando. Fico muito feliz em saber que eu tô impactando pessoas, gerações. Tá tudo certo.
Alan Rios: E, para você, o cinema é uma boa ferramenta de construção de sonhos?
Edileuza Penha de Souza: Total, total. Que pena que nem todo mundo tem acesso ao cinema. Fico pensando assim: por que será que o cinema que era um templo, pensar que todos os lugares tinham uma praça, e que nessa praça tinha uma igreja, que também tinha um cinema e as pessoas iam ao cinema. E a gente foi perdendo isso. Eu acho que nada substitui talento. Então, essa história do streaming. Claro, eu também vejo muita coisa no streaming, mas ir ao cinema é outro impacto, a tela grande. Fico sempre lembrando de Adélia Sampaio, primeira cineasta negra, quando ela diz que aos 13 anos ela entrou no cinema para ver “Ivan, o Terrível” e disse: “Vou fazer isso aí um dia, um dia eu vou fazer esse negócio que é cinema, e meu filme também vai estar lá”. Cara, era a primeira vez que ela estava entrando numa sala de cinema e ela viu e ela impactou. Por que as pessoas querem ir a Paris? Porque sabem que Paris é a cidade da luz, porque está o tempo todo na TV. E por que o continente Africano está tão distante de nós?
Um joguinho, uma brincadeira que eu sempre faço no primeiro dia de aula: pedir para que as pessoas escrevam três países europeus e três países africanos. E aí, depois, eu peço para que coloquem as capitais desses países. No geral, a maioria quase absoluta erra as capitais, não conseguem lembrar, se recordar de três países africanos. Mas isso não é culpa de ninguém, isso é culpa das ausências, porque a Europa está o tempo todo na TV, a África não, quando a gente ainda fala de África é muito num lugar pejorativo. A Nigéria é o segundo maior polo de cinema do mundo e a gente não tem acesso ao cinema africano. A gente não conhece os cineastas africanos. Então, isso é muito ruim para todo mundo, porque a gente está falando de ausências. Então, o que a gente precisa é de presença. E aí, eu acho que o cinema sim é esse lugar. Tem um uma lei que é a 13.006, que é a lei que obriga 2 (duas) horas de cinema brasileiro nas escolas. Nesse momento em que a gente está aqui conversando, que escola está implementando essa lei? A gente sabe que, por exemplo, no Plano Piloto, para cada sala de aula tem uma TV, tem um DVD ou tem um computador hoje, para que você possa acessar os filmes. Mas e aqui nas escolas da periferia, quantas TVs tem? Quantos projetores têm?Às vezes, quando muito, tem um para uma escola inteira. Então, eu acho que, sim, o cinema é esse lugar que possibilita muitos sonhos.
Júlia Rios: Edileuza, agora pensando numa parte mais prática do seu trabalho, a gente queria muito saber como é seu estilo. Como é que funciona, por exemplo, o seu roteiro do documentário? Você faz esse roteiro prévio e, ao longo, vai mudando? Depois, ele muda muito na montagem? Como é isso?
Edileuza Penha de Souza: Cada filme realmente é único e ele vai exigir uma dinâmica única. Então, eu acho que não tem uma receita de bolo. O que eu tenho primado é formar equipe, que eu acho que é uma coisa muito difícil, mas eu acho que é construção também. Então, não sei se eu tenho um estilo ainda não, mas essa coisa de priorizar majoritariamente pessoas pretas dentro de uma equipe, de ter uma equipe respeitosa e afetuosa. Eu acho que o cinema é um lugar muito violento também, esse “cinemão” aí de 12 (doze) horas, 14 (catorze) horas por dia. Enfim, eu não sei de muita coisa não, mas eu sei de coisas que eu não quero para mim. Então, eu não admito nenhum tipo de violência, nenhum tipo de assédio nos meus sets, enfim, porque é um cinema que eu acredito. Fazer cinema negro é esse cinema. E fazer cinema negro no feminino. Eu tenho escrito e tenho posto em prática um cinema de afeto, um cinema em que as pessoas saiam do set pensando: "Pô, que legal.". Porque é trabalho, né? Então, assim, o trabalho precisa ser leve, não precisa ser adoecedor. Porque eu acho que o cinema tem adoecido muita gente. Eu não quero adoecer não. Pelo contrário, eu quero viver muito. Quero filmes que me deem prazer, desde o roteiro, desde pensar a ideia do filme até a exibição. Eu acho que tem que ser essa cadeia prazerosa de "Caramba! Fui eu que fiz." Eu olho para os meus filmes com muito carinho, sabe? “É meu”. E acho que é um pouco isso. Cinema é como filhos, né?
Júlia Rios: Acho que, assistindo aos seus filmes, dá muito para perceber essa questão do afeto. Acho que ela transparece mesmo para o espectador. E aí, pensando nisso, eu queria entender com você sobre essa questão da ética no documentário, né? Da abordagem, das pessoas que vão ser entrevistadas. Como é a sua relação com as entrevistadas? Olhar essas pessoas de uma forma humana, afetuosa.
Edileuza Penha de Souza: Então, eu sempre digo... Acabei de fazer minha primeira ficção com o Santiago Dellape, que é o "Vão das Almas". Eu sempre ouvi que ficção era muito mais difícil que documentário. Mentira pura. Documentário é muito mais difícil. Porque, na ficção, você escreve o roteiro, você escolhe os atores, ensaia, ensaia, ensaia, ensaia e... Câmera, som, ação, foi. Documentário é sempre uma surpresa. Você não tem controle de absolutamente nada. Você chega para entrevistar, está tudo certo, aí a pessoa resolve que não, hoje não, “hoje eu não estou afim de falar”, ou “eu fiquei doente”, ou isso, ou aquilo. Você não tem controle de nada. E aí tem uma coisa que eu uso para mim, a pessoa está te dando a coisa mais preciosa que ela tem, que é a sua história, que é a sua memória. Então, você precisa ter muito cuidado com isso. Ainda ontem eu falava isso. Não é o fato de você ter um papel na mão autorizando o uso de imagem e som que você pode usar tudo que você ouve em uma entrevista. Essa história hoje é pública porque a Benedita (Sousa da Silva Sampaio), no ano passado, tornou isso público na Câmara dos Deputados, mas, quando a gente estava entrevistando ela, ela disse que tinha sido estuprada pelo padrasto aos 11 (onze) anos e ele a ameaçava, dizia que, se ela contasse para alguém, ele mataria a mãe dela. Imagina uma criança de 11 anos… E ela disse isso num momento de muita entrega, porque é também esse momento que a gente está vivendo aqui, né? De entrega. Vocês vão me perguntando, eu vou respondendo meio que sem filtro, né? Porque eu acho que é isso, a gente vai se entregando. E aí, quando a gente saiu do set, uma pessoa da equipe falou: “Tá vendo? As mulheres negras são violentadas, é preciso colocar isso, é preciso mostrar isso”. Eu falei: “Não no meu filme”. Se eu achasse que era muito, muito, muito importante, a primeira coisa que eu ia fazer era fazer o corte, levar até ela e dizer: “Deputada, tudo bem a gente mostrar isso aqui?”. E que bom que hoje essa história é pública, mas, naquele momento, eu não sabia se era, eu não sabia se os filhos sabiam dessa história, se os netos dela sabiam dessa história. Então, não sou eu, ao ouvir uma história de dor como essa, que vou exibir isso. O que isso me traz? Mas parece que a dor e, sobretudo a dor dos corpos negros, é de um sadismo, porque as pessoas amam, adoram. Não é à toa que “Cidade de Deus” fez tanto sucesso, né? Porque esse lugar de que nós, negros ou fomos no passado, ou somos no presente, ou seremos no futuro, bandidos, sabe? E aí, o quanto isso também está ligado a esse racismo nosso de cada dia. Então, acho que, quando você entende, e o cinema negro vem trazendo isso, né? De que não é mais possível corpos negros estirados no chão, não é mais possível cenas de mulheres sendo violentadas como se fosse a coisa mais banal, mais natural do mundo. Então, eu acho que o documentário traz isso, a responsabilidade sobre o outro, que é muito maior do que na ficção, porque, na ficção, tá ali, tá escrito, sabe? Tá posto. No documentário, você não sabe o que vem. Mas eu, enquanto documentarista, penso sempre nessa responsabilidade que eu tenho sobre o outro e o quão sagrado são as histórias, são as memórias. Então, como diz Elisa Lucinda: “Há de se ter cuidado com essa gente que menstrua, ou que menstruou”. Enfim…
Alan Rios: Edileuza, e pensando em quem tá assistindo ou ouvindo a gente, tem muita gente da área do audiovisual. Que dicas você poderia dar para quem está começando e quem quer seguir essa carreira de direção?
Edileuza Penha de Souza: Assistam filmes. É muito comum você ouvir pessoas que querem fazer cinema e que dizem que não vão ao cinema, que não gostam de filmes. Eu acho que observar é o primeiro passo, sabe? Assistam tudo que possam, porque é isso. É observando que você vai pensar: "Bom, eu quero fazer isso, não quero fazer aquilo". Mas eu acho que a primeira dica é essa: assistam filmes, vão ao cinema, levem seus amores ao cinema. Acho que isso é fundamental. Adoro assistir um filme com a minha mãe, que tem 89 (oitenta e nove) anos. E acho que, nos anos 80, o Movimento Negro Unificado tinha uma frase que era: “Beije sua preta em praça pública”. E a minha frase é: “Leve seus amores ao cinema”.
[Música Instrumental]
Alan Rios: Agora, a gente vai entrar em alguns trabalhos específicos seus, né, Júlia?
Júlia Rios: Isso. A gente sabe que você dirigiu “Conta-Contos a arte de ouvir e contar histórias”, de 2010; “Sem Limites”, de 2013; e “Um Peso por um Chiste”, de 2013. Mas a gente queria entrar especificamente em alguns outros curtas que você fez. Então, a gente tem o “Mulheres de Barro”, de 2015, um curta documental que está disponível no YouTube e na Hysteria atualmente. Foi um filme financiado com seus recursos próprios e, de prêmios, ele recebeu "Melhor Montagem" no Festival de Avanca, em Portugal, e foi exibido em mais de sete estados no Brasil.
Alan Rios: Para quem ainda não viu, como é que você pode falar sobre esse filme, esse curta documental?
Edileuza Penha de Souza: Então, é um filme de amor. É um filme que traz várias histórias de mulheres que são congueiras (pessoa que toca conga/congo, um tipo de tambor) e paneleiras, mulheres de Goiabeiras Velha, lá no Espírito Santo, mulheres que fazem panela de barro e são congueiras. A panela de barro e o congo são as principais manifestações culturais do Espírito Santo. A panela de barro, durante séculos, foi algo muito feminino, e o congo, por sua vez, foi algo muito masculino. As mulheres só adentram nas bandas de congo por volta de 1920, e só como cantantes, porque havia todo um mito de que mulher quando toca o tambor, se tivesse menstruada, podia ter hemorragia, e se estivesse grávida, poderia perder o bebê. É todo um mito masculino para que as mulheres não tocassem nos tambores. Essas mulheres, além de fazer suas panelas de barro no fundo do quintal, também lideram uma banda de congo, que é uma banda de congo muito feminina, a “Panela de Barro”. Elas só convidam os homens para tocar quando vão fazer exibição fora, quando não estão ali entre elas. O filme retrata muito mais o trabalho com barro, o fazer panela, mas também como cada uma pensa o amor romântico.
Júlia Rios: Também, uma coisa interessante é se você tinha algum pensamento estético, alguma proposta específica sobre esse filme.
Edileuza Penha de Souza: Então, esse filme, eu apresento a elas o "Assédio", do Bertolucci, que é um filme de 1997. Acho que ele ainda não está disponível. É um filme de amor, né? É a história de uma enfermeira que vai estudar medicina em Roma, na casa de um pianista e ele se apaixona por ela, e ela se apaixona por ele, mas o marido está preso em uma ditadura no continente africano. Quando ele se revela, ela diz: "Se você me ama tanto, solte meu marido". E aí, ele vai vender, inclusive o piano, que é o instrumento de trabalho, para possibilitar que esse marido seja solto. Não vou dar muito mais spoiler, vejam o filme. O filme é lindo. E eu acho que esse filme dialoga muito com o filme que ainda não foi feito sobre Chica da Silva. Tanto na novela, quanto no filme, a Chica da Silva que conhecemos é essa mulher que, primeiro, que tem um sexo quase que animal e, por conta desse sexo animalesco, ela conquista o contratador. Depois, ela cai em falência total quando ele vai embora, o que também não é verdade. Porque depois que ele vai embora, ele nunca mais consegue voltar e, na minha opinião, ele morre de amor, morre de saudades. Ela ainda funda 17 (dezessete) irmandades. A Chica teve 26 (vinte e seis) filhos, todos estudaram, todos foram para a escola. Chica é responsável pela libertação e alforria de mais de 300 (trezentos) escravizados, e é um homem que constrói um mar para essa mulher. Então, somente um homem muito apaixonado seria capaz de levar o mar até ela. Eu fui em busca de apresentar esse filme, que é o "Assédio", e colher histórias de amor, histórias que foram vividas, inventadas, enfim, histórias de amor para pensar outros roteiros. Que outros roteiros afetivos são possíveis? Na real, vou encontrar muitas histórias de dor, mas, ainda assim, são 72 (setenta e duas) horas de filmagem, um filme que tem 26 (vinte e seis) minutos e que, eu acho, consegui fazer um recorte afetuoso.
Alan Rios: E você acha que é um filme que reforça e retrata a importância da ancestralidade?
Edileuza Penha de Souza: Eu não tenho dúvida. A ancestralidade está muito presente nesse filme, desde a homenagem à Dona Maria Helena Vargas, conhecida como Helena do Sul, que escreveu "Filhas de Lavadeira", um livro que me inspirou muito para fazer esse filme. Desde a homenagem à minha mãe, que não é uma ancestral, que está viva e Oxalá, que ela viva muito, e à Dona Eva, que era uma senhorinha que teve uma importância enorme na minha vida, que lavava roupa junto com minha mãe e brincava junto com suas filhas e filhos. A Marta, filha de dona Eva, foi a pessoa que me alfabetizou antes de entrar na escola. Então, é pura ancestralidade.
Alan Rios: É muito legal isso de a gente poder ouvir as histórias de uma filha, ouvindo a história da mãe, que conta a história da avó dessa pessoa. É muito bom ter essa troca de informações, ter essa troca de vivências e a gente poder ouvir as pessoas mais velhas também. Você acha que, no cinema documental, a gente consegue reforçar isso, que é tão importante no nosso dia a dia como ser humano, que é sentar, parar e ouvir essas histórias?
Edileuza Penha de Souza: Então, eu acredito. Eu lembro, sei lá, entrei na UnB como professora em 2007. Em 2009, eu comecei a dar ETNOVIS - Etnologia Visual da Imagem do Negro no Cinema. Foi um dos primeiros semestres, eu não lembro qual, mas eu lembro de um aluno… Eu exibi um curta, que é o "Amanhecer", da Mariana Campos, que é uma cineasta preta do Rio de Janeiro. Ah! Quando você perguntou quem me inspira, também gosto muito do trabalho da Mariana, das Marianas, porque gosto da Mariana Luísa também, da Bárbara Fontes, enfim. (O curta) é a história de um menino que passa a noite inteira imaginando como ele vai contar para o pai que ele é um homem gay. A aula terminou e, depois, passou uma semana, passou outra, e, no final da aula, sempre fico com os alunos conversando naquela rodinha. Um aluno esperou todo mundo sair para poder me dizer: "Professora, queria te falar uma coisa. Há anos eu venho tentando falar para minha avó, para minha mãe que sou gay e, depois que vi esse filme, eu não voltei mais para a aula enquanto eu não disse. E o quanto foi libertador dizer! Eu estava me aprontando para vir para cá e minha mãe chegou em casa", porque a mãe era enfermeira, enfim, e ele disse: "Mãe, tenho uma coisa para te contar." Ela respondeu: "Hum?". "Mãe, eu sou gay." "Hum." "Mãe, você não vai dizer nada?" "O quê? Você vai deixar de ser meu filho porque é gay?". Me lembrei dessa história porque é isso. Eu acho que o cinema tem esse lugar, sabe? De possibilidades. Hoje, é uma figura depois de ter contado para a mãe, se tornou uma pessoa muito mais feliz, muito mais... muito mais tudo. Então, sim, eu acho que o cinema traz muitas possibilidades de transformação.
Júlia Rios: Ok, agora vamos seguir para o "Filhas de Lavadeiras", de 2019. É um curta documental financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC) e, hoje, está sendo exibido no Canal Brasil. De Prêmios, ele recebeu o prêmio de "Melhor Curta Documentário" no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e no Festival É Tudo Verdade. Também recebeu o "Troféu Tesourinha" de júri popular no Festival Internacional de Curtas de Brasília, "Melhor Filme" pela Região Centro-Oeste, Norte e Nordeste e pelo júri popular do Festival de Cinema Feminino em Cuiabá. Além disso, recebeu a "Menção Honrosa" do Cine Tamoio, no Rio de Janeiro e o prêmio do Canal Brasil de "Incentivo ao Curta-Metragem". O curta foi selecionado em outros 16 festivais, percorrendo a América do Sul e a Europa.
Alan Rios: Para quem não viu também, qual é a história do curta?
Edileuza Penha de Souza: Bom, são histórias de mulheres que, como eu, são filhas de lavadeiras, de empregadas domésticas, e mulheres que acreditaram que era por meio da escola, dos estudos, que suas filhas poderiam romper com essa predestinação das suas antepassadas e ser o que elas quisessem ser. Então, vamos encontrar professoras, pesquisadoras, assistentes sociais, mulheres que foram, estudaram e, pronto (palma), descobriram o mundo. Então, na real, é um filme das filhas, mas é um filme também das mães, da memória aí de suas mães.
Júlia Rios: Queria te perguntar também como é que foi entrevistar a escritora Conceição Evaristo e a atriz Ruth de Souza?
Edileuza Penha de Souza: Bom, Conceição Evaristo é minha amiga, né? Então, eu lembro que uma vez o meu filho caçula foi a um show, acho que era do Emicida, mas eu não sei, pode ter sido do Criolo também. E aí tinha umas projeções de imagens de mulheres e tal, e ele sabia o nome de todas. E aí, quando apareceu Conceição Evaristo, “pô, amiga da minha mãe”. Enfim, Conceição é uma amiga muito querida. Foi a última entrevista de Dona Ruth, foi a única pessoa que não viu o filme. Foi muito especial porque a gente gravou no Teatro Municipal. Dona Ruth foi a primeira mulher negra a pisar no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A gente queria gravar no palco, o palco não tinha acessibilidade, ela já estava em cadeira de rodas e não queria que a cadeira aparecesse de forma nenhuma. E aí, a Lia Maria, que fez a direção de arte, transformou a cadeira em um verdadeiro trono, então ninguém identifica aquela cadeira como uma cadeira de rodas. Foi emocionante, assim. Ela era muito vaidosa, Dona Ruth, né? E ela era muito comunicativa, gostava muito de falar ao telefone. Então, falar com ela no telefone era entender que você ia ficar horas, porque ela ia te contar várias coisas. Às vezes você estava lá na labuta e a velhinha queria falar. Mas eu acho que Dona Ruth é a musa do cinema brasileiro, sabe? Pena que ela não teve o reconhecimento que merecia em vida, porque homenagem se faz aos vivos, né? E é muito cruel quando ela conta que, muitas vezes, se esforçava imensamente para poder fazer uma cena e, de repente, quando ia assistir, às vezes aparecia somente a voz e o corpo dela não aparecia, né? Então, esse lugar de apagamento dos nossos, das nossas, é muito cruel. Foi muito emocionante mesmo poder gravar com Dona Ruth, ter esse privilégio, um puta privilégio mesmo.
Júlia Rios: Que especial também, né? Que está preservado no filme, que esse material e a memória dela estão ali. Então, acho que isso é muito potente também.
Alan Rios: O documentário tem isso, né? E vamos para o “Vão das Almas”? Saindo um pouco agora dos documentários, tem o “Vão das Almas”, que é um curta de ficção, né, Jú?
Júlia Rios: Isso. “Vão das Almas”, de 2023, é um curta de ficção de terror e de fantasia, financiado pelo FAC (Fundo de Apoio à Cultura), codirigido por você, Edileuza, e por Santiago Dellape. Foi filmado em Vão de Almas, território do Quilombo Kalunga, em Cavalcante, Goiás, que é o maior território quilombola do Brasil. De prêmios, ele foi indicado ao “Prêmio Grande Otelo” do cinema brasileiro, ganhou o “Melhor Filme” no Festival de Cinema de Triunfo, em Pernambuco, no Nox Film Fest, no Uruguai, no Morce-Go Vermelho, e no Curta Canedo, em Goiás. Também ganhou o prêmio de “Melhor Filme” pelo Júri Popular no Festival de Brasília e no FAVERA (Festival Audiovisual Vera Cruz), em Goiânia. Recebeu o prêmio de “Melhor Curta” no Rio Fantastic e no Festival de Cinema de Trancoso, na Bahia, além do “Prêmio Especial do Júri” no Fest Aruanda, na Paraíba. Recebeu ainda menções honrosas e especiais vindas do Festival de Brasília, do Festival Cine Favela, do Mórbido Fest, no México, do Festival de Curtas de Mumbai, na Índia, e do Festival de Cinema do Sul da Itália. O filme recebeu cinco prêmios de “Melhor Direção” e sete prêmios em outras áreas. Tem essa extensa carreira de premiações, mas também ainda está em distribuição. Então, ele totaliza 92 festivais até então e percorreu todos os continentes.
Alan Rios: Para quem não viu, como a gente pode explicar o filme?
Edileuza Penha de Souza: Então, o filme tenta explicar como o Saci perdeu a perna. Foi um filme que a gente gravou, de novo, eu e Santiago Dellape, né? Dirigimos, o roteiro é nosso e do Davi (Mattos), os atores são Kalungas, os Kalungas participaram também na assistência de várias equipes, na produção, enfim. Foi um fazer junto. Foi o meu maior set, nunca tinha visto tanta gente num set. Foi muito desafiador, porque a gente tinha muito pouco dinheiro, muito pouco tempo e uma história muito longa, né? E que se traduz em 15 minutos. Mas eu acho que é um filme que tem ganhado o mundo, né? É a certeza de que estamos no caminho certo. E aí, a gente está agora trabalhando no roteiro do longa, transformando essa história em um longa-metragem.
Júlia Rios: O que você e o Santiago (Dellape) pensaram esteticamente para trazer essa atmosfera de terror e suspense para o filme?
Edileuza Penha de Souza: Então, o Santiago (Dellape) é esse diretor de filmes de terror, né? Assim, acho que desde a graduação ele já vinha fazendo. Acho não, “A Bibliotecária”, que é um filme que ele fez ainda na graduação, enfim, é muito nesse lugar do terror. Eu acho que foi um casamento perfeito, assim. Eu acho que foi juntar a técnica, a expertise dele como diretor de ficção e o meu olhar, o meu cuidado enquanto cineasta negra para aquilo tudo. Então, inicialmente, eu tinha sido convidada somente para codirigir e, tanto ele quanto Davi (Mattos), foram muito generosos ao abrir o roteiro e eu pude fazer todas as intervenções que achava necessárias. E acho que hoje a gente compreende como um acerto mesmo, inclusive o protagonismo da Alzira, né? Porque, no roteiro original, Alzira morria, e um dos pactos que a gente fez foi que mulher preta não morre. Então, foi um casamento muito feliz mesmo, e não à toa que a gente acabou de ganhar o edital do Itaú para desenvolver o roteiro do longa e a gente está aí na batalha, nos encontros semanais de escrever, discutir, ir e voltar, enfim.
Alan Rios: E como foi o momento da exibição do filme para quem participou dele?
Júlia Rios: Na comunidade, né? Que você falou.
Edileuza Penha de Souza: Então, o filme estreou na festa de Nossa Senhora da Abadia, que acontece no mês de agosto, e o filme estreou lá (em Vão de Almas, território do Quilombo Kalunga). Foi a primeira exibição do filme. Ai, foi lindo. Tinha uma coisa muito engraçada que eram os ensaios, né? Às vezes, passava alguém assim que ficava observando os ensaios e também falava cenas do filme: "Alziraaa, Tião", era muito engraçado. Acho que ter visto tudo aquilo, a produção, as filmagens, que a comunidade tava o tempo todo acompanhando, e como, às vezes, a gente gravava até duas da manhã, a comunidade tava lá junto com a gente. Então, depois disso, ver a coisa na tela, assim, no telão, cara, foi uma experiência muito bacana que a gente quer repetir.
Júlia Rios: E, para finalizar os filmes, vamos falar de "Teresa", de 2014, que é um curta de ficção disponível no YouTube e no Hysteria atualmente. A Edileuza foi produtora, diretora de arte, roteirista e atriz. É um filme que ganhou 17 prêmios e, desde a sua estreia, já participou de mais de 50 festivais no Brasil e no mundo.
Alan Rios: Isso, do que ele se trata?
Edileuza Penha de Souza: Ah, então, "Teresa" fiz em Cuba, né? Tinha até esquecido do "Teresa". É um filme que... A minha casa em Cuba era meio que a Embaixada do Brasil na escola, né? Porque, enquanto todo mundo, os estudantes têm um quarto, é um quarto bem espaçoso, mas eu tinha um apartamento, que são os apartamentos dos professores. Eu fui numa condição muito especial e era a primeira vez que a escola recebia alguém na minha condição, né? Porque eu fui no sanduíche do doutorado, então usufruí de muitos privilégios, inclusive de ter uma casa só para mim. Então, meio que virou isso, a “Embaixada do Brasil”, como carinhosamente meus colegas brasileiros chamavam minha casa. E aí, era isso também, de todo brasileiro que chegava na escola, a gente fazia uma festa, e a minha casa também era esse espaço. Eu tinha… A Nense, que era a minha camareira e eu achava um absurdo ter uma pessoa que ia diariamente na minha casa limpar o meu apartamento, mas Nense acabou se tornando minha amiga, porque ela dizia: "Se você não me deixar fazer o trabalho, eu vou perder o emprego". E Nense… Tinha 18 anos que o noivo, que era então noivo, tinha ido para os Estados Unidos de balsa. E aí, tem um documentário muito importante sobre isso, que são "Balseros" (de 2002, dirigido por Carles Bosch e Josep Maria Domènech), que fala de como as pessoas atravessavam de Cuba até os Estados Unidos. E ela não sabe se ele morreu, se ele constituiu outra família. E eu achava essa história muito curiosa. Então, quando Lilih Curi, que é uma cineasta mineira, mas que está radicada há muitos anos na Bahia, chega para um curso de, acho que era um curso de direção que ela estava fazendo. Porque na escola tem o curso de longa duração e tem os cursos rápidos, né? E era um desses cursos rápidos que ela tava fazendo. Ao conhecer a história de Nense, ela fica encantada: "Isso dá um filme". E aí, eu e Sofía (Athanassopoulos), que era uma menina da Venezuela que estava fazendo um curso de alguma coisa lá, não sei se era da turma da Lilih ou se era, enfim... Mas aí a gente escreve o texto. Héctor (Montaño Jaramillo), que é um menino do México, "Não, eu vou filmar." E aí nasce o filme. Mas a única cena montada para o filme é a cena do casamento, porque "Teresa" também é uma homenagem a um dos fundadores da escola, que é o Gabriel García Márquez. Ele foi professor de roteiro da escola. Em homenagem a ele e aos "20 anos de solidão", a gente transforma os 18 em 20 e aí nasce "Teresa", que a gente ganhou também. É um filminho de sete minutos, que correu o mundo, muito também por conta do Héctor estar no México, da Sofía estar na Venezuela, da Lilih estar aqui. É um filme que correu o mundo, a gente ganhou muitos prêmios, enfim.
Júlia Rios: Mas também você comentou uma coisa que eu acho interessante do "Teresa", que é a duração mesmo. Você falou sete, mas o que eu assisti acho que é até menor ainda, tem quatro minutos.
Edileuza Penha de Souza: Não, são seis, seis e pouquinho, é menos de sete…
Júlia Rios: Mas ele é super curtinho. Aí, eu ia te perguntar isso: como é que é pensar essas narrativas curtas? Você até também falou do filme que você tinha 72 (setenta e duas) horas de material, né? E transformou em 26 (vinte e seis). Como que é passar informação em pouco tempo e, mesmo assim, ela ser tão contundente?
Edileuza Penha de Souza: Desapego. Eu acho que o cinema é isso, sabe? Eu acho que meio que virou moda, assim, fazer filmes longos, arrastados. Gente, eu quero ir para o cinema para sair flutuando, sabe? Eu quero ir pro cinema ficar (movimento de onda com os dedos das mãos) ficar feliz, assim. (risos) Ah, tem uns filmes muito chatos que, pô, aí repete, aí o cara não sabe a hora de parar. Não, faça isso com o telespectador não, com o espectador. Corta, sabe? E talvez seja muito importante que o montador não seja quem esteja dirigindo. Eu acho que tem uma coisa que vocês não perguntaram, mas eu vou falar, que é: o cinema é uma arte do coletivo, e cada função é primordial. O som, a fotografia, a direção, a montagem, tudo, assim. Uma perninha dessa que vai mal compromete o filme todo. Por isso que tem que estar em harmonia, tem que estar na mesma sintonia, sabe? Todo mundo. Acho que esse coletivo que é o cinema é maravilhoso, é tudo de muito bom. E aí, isso foi uma coisa que eu aprendi na escola de Cuba, com alguns professores de montagem, do quanto é importante o outro olhar. Porque você tá muito ali envolvido na história, então cortar alguma coisa às vezes custa muito. Então, entregue ao outro. O outro vai cortar com muito mais fluidez, com muito mais tranquilidade. Então, eu acho que é isso, assim. Cinema é também essa entrega, sabe? E, ao mesmo tempo que é esse coletivo, essa construção que precisa ser. Porque senão fica muito "o meu filme". Eu acho que é "o nosso filme", "o nosso podcast", porque a gente tá aqui construindo junto e, enfim, cada um de nós tem um papel muito fundamental nisso.
Alan Rios: Certinho. E, Edileuza, no começo a gente falou bem brevemente na sua biografia sobre a "Mostra Competitiva de Cinema Negro". Agora, você pode explicar um pouquinho sobre a Mostra pra gente?
Edileuza Penha de Souza: A “Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio”, então, essa Mostra nasce da disciplina ETNOVIS - Etnologia Visual da Imagem do Negro no Cinema, no momento em que eu já tinha terminado meu doutorado. No doutorado, eu vou me dando conta da ausência de mulheres negras no cinema e é no doutorado que eu descubro a Adélia Sampaio como a primeira cineasta negra brasileira, uma mulher bastante silenciada também pelo racismo. Adélia trabalhou com quase todos os caras do Cinema Novo, no entanto, quando se fala de Cinema Novo, a gente não menciona Adélia Sampaio, e quando a gente fala também do cinema de mulheres, de novo, a gente não fala de Adélia. Então, é descobrindo cineastas negras que (surge) a ideia de fazer um primeiro encontro de cineastas e produtoras negras. Em 2014, o MinC e o MEC, Ministério da Cultura e Ministério da Educação, lançaram o edital “Mais Cultura” nas Universidades, e a ideia era que cada universidade recebesse, dez universidades recebessem até 1 milhão e 500 mil reais e pudessem pensar cultura na universidade. A UnB abre um edital interno para 10 projetos, que seriam 10 projetos de até 150.000 reais, e aí a gente apresenta esse projeto, que era o primeiro encontro de cineastas negras e, dentro do encontro, uma Mostra Competitiva. Naquele momento, não havia nenhuma mostra de cinema negro que tivesse essa ideia da competição, e a ideia era que, muito mais do que a competição, era a premiação da importância de se escolher o “Melhor Filme”, “Melhor Roteiro”, melhor isso, melhor aquilo. Então, a ideia da Mostra estava dentro disso. Bom, aí vem o golpe da presidenta Dilma, e as coisas não foram acontecendo. No final, nós fomos um dos poucos projetos que topamos fazer a coisa, mas aí não mais com 150.000 reais, e sim com 7.000 reais em serviço. Mas a gente fez a Mostra, que teve também o apoio da Fundação Palmares, e a gente pôde trazer a Adélia (Sampaio). Agora, nesse momento (este episódio foi gravado em 09/07/2024), a gente tá com o edital aberto para a sexta Mostra. Em 2020, por conta da pandemia, a gente não realizou a Mostra. Ano passado, 2023, por falta de patrocínio, a gente não fez a Mostra, e este ano, 2024, embora a gente não tenha recebido nenhum financiamento, a gente resolveu fazer a sexta Mostra com a cara e a coragem. Então, é uma mostra de cinema negro, de cinema negro no feminino, porque é onde a gente reúne diretoras negras do Brasil e do mundo, que busca premiar esses trabalhos. Então, na verdade, embora tenha esse lugar de competição, é um aquilombamento, porque, nas poucas vezes que a gente pôde fazer a Mostra, pôde trazer as cineastas. No ano de 2019, por exemplo, a gente recebeu um financiamento do FAC (Fundo de Apoio à Cultura), e aí a gente pôde trazer todas as realizadoras e foi um aquilombamento mesmo, assim. Foi lindo as pessoas estarem juntas, se reunirem, verem seus filmes e os filmes das outras. Então, a Mostra tem esse lugar, e acho que já disse, mas é bom repetir, de homenagear em vida a Adélia Sampaio, uma mulher que este ano completa 80 anos, agora no dia 13 de agosto. “Amor Maldito”, primeiro filme lésbico da América Latina, completa 40 anos e, tanto Adélia quanto seu filme, Adélia tem uma puta produção, foram silenciados. Então, acho que é muito importante homenagear essa mulher, e a gente tá chamando para que o cinema brasileiro e entidades marquem agosto como um mês de homenagem a “Amor Maldito”, que tem 40 anos e é muito contemporâneo.
[Música Instrumental]
Alan Rios: Infelizmente, a gente tá chegando no final, mas a gente tem aqui um ciclo de perguntas, que são perguntas mais rápidas. É uma dinâmica que a gente faz com todos os nossos entrevistados, de fazer algumas perguntas com respostas rápidas também. A gente pode ir para essa parte então? Vamos lá?
Júlia Rios: Vamos.
Alan Rios: Primeiro, a gente quer começar perguntando: que livro sobre direção você recomendaria?
Edileuza Penha de Souza: Existe um monte de manuais, mas, assim, um livro que tem me tocado muito é o diário de “Temporada”, do André Novais. Vale a pena ler.
Alan Rios: Perfeito.
Júlia Rios: E que filme que já existe você queria ter feito?
Edileuza Penha de Souza: Acho que “Assédio”, do Bertolucci. Tem muitos outros, mas, assim, como resposta rápida, “Assédio”.
Alan Rios: E agora sobre filmes do DF, que filmes do DF te marcaram ou qual filme do DF te marcou?
Edileuza Penha de Souza: Então, gosto muito da produção do Bruno Victor e do Marcus (Azevedo). Gosto muito dos documentários da Dácia (Ibiapina), gosto muito da produção da Renata Diniz, da Flora Egécia. Acho que essas pessoas estão, assim, no meu top dez.
Júlia Rios: Que cineasta do DF você citaria como se fosse uma homenagem para essa pessoa?
Edileuza Penha de Souza: Dácia (Ibiapina). Acho que Dácia é uma mulher que merece também todas as homenagens, pela generosidade e pelos belíssimos filmes e documentários que ela tem nos presenteado.
Alan Rios: Perfeito! Outra dinâmica que a gente tem, para fazer esse ciclo girar e termos um diálogo entre os episódios, é uma dinâmica de perguntas e respostas entre os próprios entrevistados. A gente tem aqui uma pergunta para você de uma pessoa que já entrevistamos, né, Júlia?
Júlia Rios: Isso! O Bruno Victor perguntou para você quando ele vai ser recebido para jantar na sua casa. Mas ele também quer saber qual foi a primeira vez que você se viu como cineasta?
Edileuza Penha de Souza: Bruno, querido, minha casa é sua casa! Venha, você que não vem a Brasília. Você sabe o quanto eu te amo e que vou ter um enorme prazer de jantar e tomar vinho com você.
Então… Meu neto Kamal tem 10 anos, e acho que ele tinha uns seis quando a escola ia fazer um... Acho que era um podcast. Se tornou um podcast, mas, na real, naquele momento, era para fazer um documentário sobre as águas. O Kamal estuda na Escola da Árvore, que fica no Córrego do Jerivá, e tem várias nascentes ali. Então, a escola ia fazer um filme sobre as nascentes e ele disse: “Tem que chamar minha avó, minha avó é cineasta”. Enfim, ouvir isso do meu neto me deu também esse lugar, de que sim, sou uma cineasta. Mas o momento em que eu me senti cineasta? Ah, eu acho que é todo dia! Eu acordo e penso: “Pô, antes de ser cineasta, tenho que arrumar a casa” (risadas). Sempre falo assim de (ser) Maria Cineasta. Tenho que fazer comida, tenho que arrumar a casa, essas coisas... Mas, (aí penso): “Opa, bora, cineasta! Tem muito trabalho aí para fazer.”
Alan Rios: Que legal! A gente fez essa entrevista do Bruno (Victor) junto com o Marcus (Azevedo), e o Marcus também fez uma pergunta para você. Ele quer saber: depois dos filmes que você fez, o que você ainda quer fazer? O que você quer contar que ainda não contou?
Edileuza Penha de Souza: Nossa, eu tenho um milhão de histórias de amor para contar! Tem umas velhinhas que me inspiram para caramba, a Agnès Varda era uma delas. E eu quero viver até os 120 (cento e vinte anos), fazendo filme até lá! Então, jovens, tô aqui, me convidem!
Júlia Rios: A gente também vai entrevistar a Dácia, né? Dácia Ibiapina vai ser uma das nossas entrevistadas. Queria saber se você tem alguma pergunta que quer fazer para ela.
Edileuza Penha de Souza: Então, eu acho que eu queria saber da Dácia o que a inspira. O que, ou quem, a inspira? E como é o processo de construção dos seus filmes? Como ela vai gerindo isso? E, por último, agora que está aposentada da UnB, tem sido mais fácil fazer seus filmes?
Júlia Rios: Edileuza, uma das nossas entrevistadas também será a Rafaela Camelo. Queria saber se você tem alguma pergunta que gostaria de deixar para ela.
Edileuza Penha de Souza: Rafa, por que você escolheu falar de amor nos seus trabalhos? Qual é a importância de falar de amor no cinema? Um beijo, Rafa!
Alan Rios: Já que são tantos futuros trabalhos, como as pessoas podem acompanhar o que você está fazendo hoje?
Edileuza Penha de Souza: @edileuzapenhadesouza
Alan Rios: No Instagram? Em todas as redes?
Edileuza Penha de Souza: No Instagram.
Alan Rios: Perfeito.
Júlia Rios: Maravilha.
Alan Rios: Edileuza, muito obrigada pelo papo! Acho que todo mundo aqui e todo mundo que está assistindo ou ouvindo gostou também. Para a gente, foi uma super honra ter você aqui, né, Júlia?
Júlia Rios: Com certeza!
Alan Rios: Para a gente foi um prazer imenso, muito obrigado!
Edileuza Penha de Souza: Vida longa a esse podcast! Que a primeira temporada se reverbere em muitas temporadas. Quero estar aqui de novo com vocês! Me chamem, quero vir falar dos outros filmes.
[Música Instrumental]
Júlia Rios: Este podcast é uma realização da Respiro Filmes, com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura e da Secretaria de Cultura do Distrito Federal. Com pesquisa, roteiro e apresentação por Júlia Rios e Alan Rios. Direção, captação de áudio, edição e mixagem de som por Luiza Chagas, produção de Heloísa Schons. Captação de imagem por Rômulo Aires, da Ada Audiovisual, e trilha por Pratanes. Agradecemos à Casa Akotirene, quilombo urbano e organização de mulheres negras, que nos recebeu. Muito, muito obrigada por escutar! Siga a gente no @respiro.filmes no Instagram e no canal do YouTube da Respiro, se você ainda não estiver seguindo. Até o próximo episódio! Tchau!
Alan Rios: Tchau, tchau, até!
