1º EPISÓDIO - RAFAELA CAMELO
SOBRE RAFAELA CAMELO
Rafaela Camelo, 38 anos, é diretora, roteirista e produtora de cinema e TV formada em Audiovisual pela UnB e pós-graduada em roteiro pela FAAP. Escreveu para Globoplay, Disney Star+, Canal Futura, CineBrasilTV e PrimeBoxBrasil. Já foi apontada pela Variety como um dos 10 novos talentos do cinema brasileiro, foi selecionada para o programa latino-americano do Berlinale Talents e integra a Rede Paradiso de Talentos. Dirigiu os filmes A Natureza das Coisas Invisíveis (2025), As Miçangas (2023), O Mistério da Carne (2019) e A Arte de Andar pelas Ruas de Brasília (2011).
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https://www.instagram.com/apoteoticacinematografica/
INFORMAÇÕES
Este episódio foi gravado em 04/07/2024.
FICHA TÉCNICA
Realização e Produção: Respiro Filmes.
Roteiro, Pesquisa e Apresentação: Júlia Rios e Alan Rios.
Direção, Captação de Áudio, Edição e Mixagem de Som: Luiza Chagas.
Ideia Original e Produção: Heloísa Schons.
Produção Executiva: Bruna Lopes e Arthur Lima da Iroko Projetos.
Captação de Imagem: Gabriel Machado da Ada Audiovisual.
Trilha: Pratanes.
Agradecimento: Chácara Indaiá.
Supervisão Artística: Júlia Rios e Luiza Chagas.
Edição de Cortes: Pupila Audiovisual e Fernanda Coutinho.
Gestão de Redes Sociais: Babi Pinheiro.
Transcrição e Legendagem dos Episódios: Vini Moreira e Anyelle Amarante.
Criação de Identidade Visual e Criação da Logo: Rodrigo Camargos.
Ilustração do Copo da Temporada: Daniel Freitas.
Este projeto foi realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal.
TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIO
Júlia Rios: Antes da gente chamar nossa convidada, gostaríamos de te apresentar a locação de hoje. Nossa gravação aconteceu na Chácara Indaiá, um dos locais emblemáticos do filme “A Natureza das Coisas Invisíveis”, dirigido pela nossa entrevistada.
Ah, e um detalhe importante, o filme recentemente mudou de nome e, inicialmente, se chamava “Sangue do Meu Sangue”. Então, sempre que ouvirem a gente falando esse nome, estamos nos referindo ao longa “A Natureza das Coisas Invisíveis”.
Bora conhecer nossa convidada!
[Música Instrumental]
Alan Rios: Oi, gente, esse é o Podcast Respiro Filmes, um podcast sobre cineastas do Distrito Federal. Estamos no Spotify, Deezer e também no YouTube. Eu sou o Alan Rios.
Júlia Rios: Eu sou a Júlia Rios.
Alan Rios: E essa é a temporada de Direção. E, hoje, nós estamos aqui com Rafaela Camelo. Bem-vinda Rafaela!
Júlia Rios: Oi, Rafa!
Rafaela Camelo: Oi, gente! Obrigada pelo convite.
Alan Rios: Vamos falar um pouco aqui sobre a Rafaela Camelo, que tem 38 (trinta e oito) anos, é diretora, roteirista e produtora de cinema e TV. Formada em audiovisual pela UnB (Universidade de Brasília) e pós-graduada em roteiro pela FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), escreveu para a Globoplay, Disney, Starplus, Canal Futura, Cine Brasil TV e Prime Box Brasil.
Júlia Rios: A Rafa também tem uma produtora chamada Apoteótica Cinematográfica. E ela já foi apontada pela (revista) Variety como um dos dez novos talentos do cinema brasileiro. Foi selecionada para o programa latino-americano da Berlinale Talents (Buenos Aires, 2021) e integra a rede Paradiso de Talentos.
Rafa, a gente fez a sua minibio, a sua biografia técnica, mas a gente queria saber quem que é a Rafaela Camelo. Como você se definiria? Talvez como seus amigos ou familiares descreveriam quem você é?
Rafaela Camelo: Complicado, né? Eu acho que a Rafaela é uma pessoa que tem medo de dentista, que gosta de ler histórias mal assombradas, que acredita em tudo mas não acredita em nada, que acende uma velinha toda sexta-feira na varanda (risos). E que tem uma ligação muito forte com esse lugar (indica o local que estão realizando a gravação), esse lugar aqui especificamente, mas com Brasília, com o Cerrado, com a UnB, são coisas que me definem.
Alan Rios: E quando a gente fala profissionalmente, o que que você gosta de destacar mais quando a gente fala da cineasta Rafaela Camelo?
Rafaela Camelo: Eu acho que algo que eu gosto de usar como uma... Acho que não como uma característica assim né? Mas eu acho que com o tempo, com as experiências que eu já tive eu vou vendo os elementos que vão se repetindo ou as coisas que vão me dando mais prazer. E, pra mim, são duas coisas: Uma é a escrita, pensar em histórias, pensar em dramaturgia, pensar em reconstruir histórias, acho que isso é uma coisa também que eu gosto bastante. Eu gosto muito do processo de reescritura, de refação, de aprimoramento das histórias. E nessa parte de direção, eu gosto muito, sou completamente apaixonada por elenco. Porque eu acho que é também um estágio desse trabalho com o texto, com o desenvolvimento de personagem. No momento em que a gente chega no set eu vejo que o ator, a atriz é esse grande parceiro né? Nesse aprimoramento, nesse olhar para cada um dos personagens. No momento em que tudo tá se tornando realidade, no momento que a gente tem uma locação, no momento em que a gente tem outras pessoas trabalhando em elementos artísticos, trabalhando no som, trabalhando na arte, eu acho que o elenco é um roteirista também, junto com o autor da obra. Acho que essas duas coisas que eu vejo que pra mim são muito importantes, muito definitivas.
Alan Rios: Ah, que bacana! E a gente vai falar muito sobre o elenco. E você falou da escrita, o que que te inspira e quais são as suas referências nas artes em geral?
Rafaela Camelo: Não sei, acho que muito eu acabo, para cada projeto, buscando referências que tenham a ver com aquele universo, com aquele tema. Eu tenho, obviamente, autores, diretores favoritos, filmes que sempre voltam na minha cabeça, mas, o que me inspira é esse encontro de quase uma pecinha de um quebra-cabeça. Nas minhas histórias geralmente eu parto de uma situação e aquilo eu vou tentando montar como se chegou naquela situação ou quem é a pessoa que vive aquela situação, então acaba sempre... Essa inspiração vem do estar no mundo, não vem de um lugar único, não consigo apontar um lugar único.
Júlia Rios: E aí pensando nessa questão das referências ainda, como que é o seu processo para criar esteticamente o conceito de um filme? Como que é o seu processo de decupagem também?
Rafaela Camelo: Eu me considero uma pessoa um pouco obsessiva, eu acho que é uma característica que eu vejo que acaba sendo muito essencial no meu processo, acho que a obsessão, a obsessão pelo tema, a obsessão pela pesquisa, pelo aprofundamento de referências visuais ou técnicas em cima de um tema. Eu acho que é algo que eu vejo também em outras pessoas que eu admiro, no Manu por exemplo, o Manu é muito assim, o Emanuel Lavor que fez codireção comigo no "As Miçangas", Otávio Chamorro também, que é meu sócio na Apoteótica e que agora a gente tá fazendo o primeiro longa dele. Então, a partir daquele tema eu vou montando um pequeno universo que vai desde abrir uma pasta no Pinterest, buscar imagens, a buscar filmes, a começar a direcionar o meu olhar que essas coisas começam a parece que pular na nossa cara, quando a gente tá fazendo algum tipo de pesquisa. E, enfim, a partir desse universo que eu vou gerando sobre aquele tema, eu vou conseguindo fazer as minhas escolhas. A minha decupagem, ela parte muito do pensar esse ator no espaço, imaginar esse espaço. As primeiras versões de decupagem são sempre muito a partir do desejo. Por isso também são tão importantes porque é ali que você consegue descrever e passar para outras pessoas, uma pessoa que vai pesquisar uma locação, uma pessoa que vai fazer direção de arte, a partir dali que você vai conseguir demandar, "brifar" isso, tirar da sua cabeça e colocar ali numa imagem. E eu acho que nesse processo também o filme vai amadurecendo, eu acho que fui muito abstrata na minha resposta (risos). Mas eu acho que tem um pouco disso, é uma porta que você abre que você tem que ir sem saber exatamente o que que é, mas enfim, o caminho é esse então se é um universo, por exemplo, de época, obviamente aí é muito mais claro a pesquisa. Essas referências visuais que já foram criadas, livros que foram publicados nessa época, tentando entender o espírito do momento, que lugares você pode visitar, e a partir de tudo isso é se amalgamar todas essas coisas e pensar numa imagem única.
Alan Rios: E é muito legal que você falou dessa obsessão, né, Rafa? O que que te motiva a fazer cinema hoje, o que te dá essa obsessão?
Rafaela Camelo: Nossa, não sei, acho que é porque é a única coisa que eu sei fazer (risadas), então é meio que isso. Para mim, em algum momento pareceu que foi por acaso, quando eu era adolescente eu fui procurar… Definir uma profissão, mas depois eu vi que realmente é a minha escolha mesmo, eu acho que eu demorei muito tempo para encontrar esse lugar de direção e de roteiro. Eu fiquei muito tempo como produtora, gosto muito de produzir ainda, tenho esse prazer de pensar em estratégias para levantar o filme e organizar os processos, isso é uma coisa que faz muito sentido dentro da minha vida. Mas, para mim, foi muito, não sei, o Cine Brasília por exemplo foi muito importante nisso. Acho que duas coisas, o Cine Brasília e a Loc Vídeos que era uma locadora de vídeos que tinha na 103 sul que tinha essas coisas de você alugava 5 (cinco), era VHS ainda, olha só, 5 (cinco) VHSs para passar uma semana e aí eu fui gostando daquilo e tal, e aí no momento de escolher um curso eu achava que ia pro Jornalismo mas quando eu vi a possibilidade ali de: “Ah eu posso escolher audiovisual e depois eu mudo”, acabou ficando.
Júlia Rios: Que legal Rafa. Dá para ver o seu amor pelo cinema. Queria te perguntar também sobre algumas relações, como que é o seu trabalho com os chefes de departamento? E queria saber também se você sente que você precisa ter todas as respostas para tudo sempre.
Rafaela Camelo: Com certeza você precisa ter todas as respostas para tudo, sempre, mas naquele modo Tele-Sena né? Resultado parcial. Acho que o trabalho da direção é justamente esse, faz parte da sua função, você não pode falar que você “não sabe”, você pode falar que “talvez seja isso”, mas “não sabe”... Eu acho que você interrompe o processo de outras pessoas também que tão envolvidas no filme. Obviamente, não é a coisa do romantizar o lugar da direção como sendo esse oráculo que vai ter tudo na ponta da língua, né? Mas, de fato, é uma parte muito importante dentro do set justamente porque é aquela pessoa que vai fazer as escolhas, né? Então você não ter as respostas é um pouco, não sei, acho que deixa a equipe em um lugar improdutivo, talvez. Eu sou a favor disso, de abrir o jogo, quando são coisas que estão em processo, coisas que tão se amadurecendo e eu acho que todo mundo entra também nessa energia de entender que uma primeira solução pode não ser a que vai para o filme, mas vai te levar a uma outra pergunta. Eu sinto que eu tenho uma relação mais próxima, você perguntou dos chefes de equipe… Acho que talvez com a fotografia, com a direção de arte eu sinto que eu entendo pouco ainda, então até por isso é um lugar para mim que eu tento colocar pessoas que eu confio bastante. Esse processo conjunto com direção de fotografia de fazer, de pensar os planos, de pensar a cor do filme, de pensar o tempo também, de pensar os movimentos, eu acho que isso é um dos elementos formais que eu acho que dão, pelo menos na minha construção, que eu acho que é o que me ajudam a chegar no resultado de um filme. Então, para mim, é muito importante. E existe esse costume de se colocar esse lugar da câmera como quase em um altar, né? E eu brinco muito falando que não, não é assim, eu posso parar tudo da fotografia porque sei lá, porque minha atriz precisa conversar (risos), então não, não é a câmera o lugar mais importante, o camarim é o lugar mais importante, o lugar onde está o elenco é o lugar mais importante. E é muito bom quando com a direção de fotografia se consegue essa parceria de entender também que o filme precisa estar preparado para ser filmado, o elenco precisa estar preparado. Então… Enfim, divaguei muito.
Alan Rios: Mas a próxima pergunta é sobre o elenco, né, Júlia?
Júlia Rios: É exatamente o que eu ia te perguntar (risadas). É muito bom você ter falado isso do elenco, porque eu acho que isso fica muito notório nos seus filmes, né? Toda sua filmografia são filmes de personagens, o elenco está sempre muito bem, sempre tem uma atuação de destaque, geralmente eles são elogiados em festivais e recebem prêmios, você ganha “Melhor direção”, aí eu queria entender com você sobre isso, como que é essa sua relação com o elenco na construção, desde o início mesmo, até pensando no roteiro, até o set. E também como que é o seu trabalho com os preparadores de elenco?
Rafaela Camelo: Eu gosto muito de estar super presente desde o processo de seleção. Até hoje nos curtas e no longa que eu fiz eu consegui fazer isso, consegui estar presente em todas as etapas. Em um dos curtas, no "As Miçangas", o que aconteceu foi que a gente não teve um processo de casting, o filme foi construído para as duas personagens que estavam em cena. São duas personagens que foram o elo de ligação entre eu e o Manu (Emanuel Lavor), o convite do Manu para eu codirigir esse filme com ele fez sentido por conta delas, pela relação que a gente tinha por ser um filme construído para elas. Os meus curtas anteriores eu sempre estive presente desde as primeiras etapas de seleção de elenco, justamente porque na escolha daquela atriz, eu me abria também a trazer elementos novos para o roteiro. Então foram, coincidentemente em todos, tanto nos curtas quanto no longa, foram atrizes muito jovens. No longa, foram meninas de 10 (dez) anos. Nos curtas, eram meninas ali mais velhas mas que, ainda assim, que eram atrizes também, mas de certa forma por serem muito jovens, a personalidade, o que elas traziam naturalmente naquela convivência que era extra cena são coisas que me interessavam incorporar, então eu usei um pouco como o elemento de pesquisa também para poder incorporar nas personagens. No "O Mistério da Carne", o encontro com a Pâmela (Germano) transformou a personagem que era um outro perfil, era um outro arco de personagem e quando eu a encontrei, eu falei "tá, mas e se a personagem for de tal jeito eu posso chamar essa atriz”.
Alan Rios: E a atriz tem quantos anos?
Rafaela Camelo: A Pâmela (Germano) tinha 18 (dezoito) anos quando ela fez o filme, mas a ideia é que a personagem tivesse 14 (catorze). Por questões legais, a gente optou por serem meninas maiores de idade.
Júlia Rios: Aí, pensando até nisso assim, o tanto que o filme se transforma, eu queria te perguntar agora sobre o processo final, depois que você termina todo o processo, como que é para você ver a recepção do público para o seu filme? Como que é ler a crítica de um filme seu, como é abrir o Letterboxd e ler os comentários de um filme, como é que é isso?
Rafaela Camelo: Ah, eu acho divertido, assim, obviamente eu tenho filme no YouTube, filme no Letterboxd, eu vejo os comentários, eu vejo pessoas que não gostaram, mas nem eu gosto de tudo também, então assim, não são coisas que me incomodam assim. Claro que às vezes quando pega em um lugar muito sensível assim, você fica “Poxa precisava falar assim?” (risos). Mas, no geral, eu acho muito divertido, porque às vezes esse processo de assistir um filme, apreciar um filme, não sei, nem sempre o resultado massa é só “Nossa, amei seu filme, como você é inteligente, como você conseguiu fazer aquela cena?”. Às vezes você gerar um outro tipo de sensação, eu acho genial também. Então, assim, teve uma vez que eu passei o curta, o "O Mistério da Carne", para um grupo de adolescentes de 11 (onze), 12 (doze) anos e é um filme que tem algumas cenas que são asquerosas, que a menina come do chão, lambe coisas, enfim, cheira coisas asquerosas. E a sessão, os meninos odiaram porque eles ficaram o filme inteiro falando “ARGH, ARGH” (sons de repulsa) e a pergunta foi “Quanto você pagou para sua atriz para fazer isso?”. Eu achei genial (risos), eu achei genial porque assim, é um tipo de sensação que o filme é capaz de criar. Acho massa os adolescentes acharem o filme asqueroso, porque é! (risos). É muito bom que nesse filme tem um comentário no Letterboxd que é, que são algumas coisas assim, do tipo: “Ô menina estranha”, “Ai, falta de higiene e...” como é? É tipo “Amor lésbico e falta de higiene”. Uns comentários que eu acho sensacionais (risadas).
Alan Rios: E, conversando com a Júlia, a gente estava falando um pouco sobre algumas recorrências de alguns trabalhos seus como, por exemplo, a recorrência da adolescência, né Júlia? Você deixou uma pergunta sobre isso, sobre esses elementos de adolescência, religião.
Júlia Rios: Isso. Rafa, a gente vê sua filmografia e a gente consegue analisar, perceber vários temas em comum, né? Então você sempre trata de mulheres mais jovens que são protagonistas, você trata muito do amor, geralmente o amor de uma mulher por outra, você coloca animais nos seus filmes, né? Tem porco, tem cobra. Tem o elemento sangue também, né? Que aparece em alguns filmes. Aí, eu queria que você falasse sobre essas suas recorrências. Outra também é a religião, seja a culpa cristã ou então rituais no geral da religião. Como que são essas recorrências para você?
Rafaela Camelo: Isso é engraçado porque nesse momento em que as obras já estão prontas, né? Eu fico olhando para trás falando: “Ah, será que tem algo que seja minha identidade, meus temas?”, aí eu consigo identificar, não que seja necessariamente uma coisa que eu busco ativamente de “Ah não, quando eu for criar uma história, vou criar uma história para fazer sentido nesse lugar”. Não sei, eu acho que eu gosto muito desse lugar da religião, desse lugar mítico, porque foi algo que, na minha formação, na minha vida familiar, acho que me marcou muito, algo que tá muito lá dentro e, enfim, quando eu vou tentar encontrar alguma inspiração de algo, alguma sensação, alguma memória, que seja autêntico e que eu consiga falar sobre acaba atravessando esse tema. Então, eu acho que vem um pouco daí. Mas acho que não de uma forma muito racional de buscar um “Nossa eu tenho algo para falar sobre a questão religiosa”, porque eu acho que é um elemento que só atravessa os filmes, não é o tema. Nem na cobra (referência ao filme “As Miçangas”), nem no Mistério (filme “O Mistério da Carne”), nem no sangue (filme “A Natureza das Coisas Invisíveis”), nem nada. O da adolescência, eu acho que pensando em personagens, personagens que tem essa certa obsessão, é muito fácil para mim encontrar isso em um adolescente ou em uma criança, alguém que está nesse processo de descoberta, de vivência, de algo pela primeira vez, então acho que talvez venha daí essa preferência por personagens jovens. Acho que neles faz muito sentido colocar essas sensações extremas que você acredite, que você assista e veja do tipo “Nossa, eu já senti isso, eu já passei por isso, ou isso faz sentido”.
Alan Rios: É interessante que o começo da sua resposta foi muito boa, me trouxe várias reflexões aqui sobre você falar que, depois do filme pronto, você revê e fica pensando “Será que tem alguma coisa minha aqui?”. Então é um trabalho quase que psicanalítico, né? Você tem essa visão de começar a se conhecer a partir das suas obras também, a partir desse contato com o audiovisual? Você percebe um pouco esse trabalho sobre você mesma? Essas reflexões sobre você mesma, né? Que é tão importante a gente fazer.
Rafaela Camelo: Sim, sim, total. Nossa, eu vejo até nesse processo do desenvolvimento do "Sangue do Meu Sangue" (“A Natureza das Coisas Invisíveis”), que é o longa, que as primeiras versões eram apocalípticas, eram umas histórias crueis de pai e filha e uma coisa muito assim. E eu senti que, ao longo do tempo, eu fui usando aquilo quase como um processo meu de perdão, e um processo terapêutico mesmo de curar algumas coisas em mim, e no final virou um filme, acho que um filme muito fofo, né? Um filme de amor, um filme de família. Então eu acho que tem muito, não tem como a gente escapar da pessoa que a gente é quando a gente vai criar. Eu acredito que até naquele filme universitário, aquele clássico do filme de apartamento, de um casal em crise em um apartamento, sempre vai ter algo do autor assim, né? Acho que aí também que eu acho que se aproxima o processo do ator, que isso é mais falado, e é mais usado estrategicamente no ator, do tipo: “Eu vou aqui usar um Stanislavski, eu vou aqui incorporar as minhas memórias nesse personagem”. Mas essa parte do diretor e do roteirista também que de fato incorpora um pouco das suas memórias, das suas vivências, das suas sensações, eu acho que é algo que não sei se não se fala, que eu acho que não é o não se fala, mas talvez, seja algo que, se a gente olhasse para a técnica dos atores, se olhasse para as estratégias que eles usam, talvez facilitasse o nosso processo também de tornar isso uma ferramenta, né? Não necessariamente filmes que falam sobre a gente, filmes que são biográficos, ou filmes que passam por uma experiência. Acho que nenhum dos meus filmes, tirando um (risos) é uma experiência que eu passei, mas de certa forma a emoção e a transposição dessa emoção em uma outra situação é algo que acontece.
Júlia Rios: A gente vai entrar na sua filmografia, Rafa, mas para falar delas eu queria te fazer uma pergunta sobre isso que você falou também de ir mudando durante o processo. Aí eu queria te perguntar isso também sobre você, porque você roteirizou, dirigiu e montou dois curtas seus, e aí agora você tá fazendo isso com o seu longa. Aí eu queria entender como que você sente que você é uma Rafa diferente, da Rafa que fez isso em 2010, 2011, para a Rafa que está fazendo isso agora em 2023 e 2024?
Rafaela Camelo: Esse processo de diretor que monta também é super polêmico, né? Mas eu não ligo não, eu monto mesmo (risadas). Porque eu sinto isso muito condizente com o processo de desenvolvimento de história, com o processo de desenvolvimento da dramaturgia então a montagem acaba sendo uma etapa dessa, né? Eu acho que antigamente talvez eu tenha feito isso, nos primeiros curtas, nessa necessidade de ter que fazer. Porque, enfim, filmes com pouco dinheiro, a gente acaba investindo muita grana na produção e aí na hora que chega na pós, né? A direção fica meio abandonada. Nos primeiros filmes eu acho que tive que me virar nisso, né? Mas para mim foi um grande lugar de aprendizado, a partir do momento que você passa também pela montagem você entende também o que de fato é definitivo quando você vai fazer uma decupagem. Acho que é um processo de estudo também pra roteiro você fazer a montagem, acho que tá tudo condizente ali com o que é gerar ritmo e, enfim, e trabalhar na narrativa de um filme. Eu acho que hoje eu faço isso com meu longa que está em finalização, mas hoje eu tenho noção que, como é um processo muito maior e que envolve muito mais gente, eu não estou fazendo isso sozinha (risos). Então, de fato, eu tenho uma montadora que a gente tá dividindo isso, e é muito importante também nesse processo de conseguir dialogar e conseguir ter outras impressões sobre o material, porque às vezes a gente fica muito imbuído da intenção que a gente quis dar na cena e achou que aquilo estava construído, mas no momento em que monta aquilo não faz mais sentido ou poderia ser outra coisa. Então eu acho que isso foi em todos os filmes que eu montei, ficaram muito diferentes do que era o roteiro, eu acho que o “Sangue” (“A Natureza das Coisas Invisíveis”) agora ficou bastante diferente. Eu uso isso como um processo de fechamento ali dessa construção da dramaturgia que eu gosto tanto.
[Música Instrumental]
Júlia Rios: Mas agora sim, entrando especificamente nos seus trabalhos, né? A gente vai fazer por ordem cronológica, até para acompanhar essa evolução também.
Rafaela Camelo: Tá bom.
Júlia Rios: Você tem um primeiro curta, né? Que é o "A Arte de Andar pelas Ruas de Brasília", de 2011, que é um curta de ficção que foi financiado pelo FAC (Fundo de Apoio à Cultura) e atualmente, ele está disponível no YouTube. Eu queria falar os prêmios dele porque eu acho que é muito importante a gente ressaltar essas coisas também. Então ele recebeu “Melhor Curta” no Festival de Brasília, no For Rainbow no Ceará, no Curta Taquary em Pernambuco, no Andalesgai na Espanha e no Q Cinema Texas nos Estados Unidos. Ele também foi premiado com “Melhor Direção” e “Melhor Roteiro” no Curta Taquary e “Melhor Direção” no Primeiro Plano em Minas Gerais, além de ter recebido prêmios de “Melhor Atriz” para Angela Amorim e Joana Lapa e “Melhor Direção de Arte” e “Melhor Fotografia”, também. E aí além disso tudo, ele foi selecionado em outros 20 festivais, então, ele percorreu América do Sul, América Central, América do Norte e Europa.
Alan Rios: E aí, como a Júlia falou que tá no YouTube, para quem tá assistindo a gente no YouTube já abram uma nova aba aí para ver depois, quando acabar o podcast. Mas a gente queria perguntar do que que esse filme se trata, se você pode falar um pouquinho para a gente, para quem não viu, como você pensou ele esteticamente?
Rafaela Camelo: Esse foi um roteiro que surgiu enquanto eu estava estudando na UnB, no curso de Audiovisual, e eu acho que ele tem uma relação muito forte também com o momento em que, pela primeira vez, eu me vi nessa possibilidade de roteiro e direção. A sinopse é até meio abstrata, duas garotas que se encontram na cidade e tal, mas é um filme que traz essa sensação de encontros e desencontros, essas duas meninas que todos os dias se encontram no metrô para trocar cartas e a amizade delas é um pouco baseada nisso, nesse encontro fortuito ali até o momento em que isso é quebrado por uma paixão de uma menina por um garoto. Acho que é um filme também que eu acho fofinho assim (risadas). Hoje eu vejo ele com bastante carinho, como uma primeira experiência assim de direção também, foi interessante, para mim foi muito desafiador estar no set, né? Estar no set como diretora pela primeira vez. Precisei muito do suporte, principalmente do Otávio (Chamorro), que é meu sócio (Apoteótica Cinematográfica), né? E foi nesse filme que eu comecei a minha parceria com a Dani (Daniela) Marinho também, que esse foi o primeiro filme que ela fez direção de produção e a partir daí a gente nunca mais parou de trabalhar juntas também. Então é um filme que eu tenho bastante carinho. Eu queria enfim trazer essa imagem muito de Brasília né, então na escolha das locações isso foi muito importante, de trazer essa paisagem, de trazer ali a W3, trazer essa caminhada das meninas em uma entrequadra, que eu sou uma pessoa de Brasília. Morei uma parte da minha vida no Valparaíso e depois vim para o Plano Piloto, Valparaíso que já é Goiás, né? Mas aí quando eu vim pro Plano Piloto eu quis trazer um pouco desse ambiente. Não sei, não sei muito mais o que falar desse filme, eu acho que é um filme bem simples e que nesses comentários que a gente estava falando do Letterboxd, que eu acho muito engraçado um dos comentários que é “Quando é que vão lançar o filme inteiro?” (risadas). Que é isso assim, né? Que é um filme meio que é muito uma fatia de tempo da vida dessas meninas, então ele não tem um final muito definitivo, muito revelador, conclusivo, então eu acho engraçado.
Júlia Rios: A gente tem algumas curiosidades sobre coisas que você até falou também, mas eu queria só comentar que eu fico feliz que você vê esse filme, que foi feito alguns anos atrás, e vê ele com muito carinho, que eu acho que isso é muito interessante assim.
Rafaela Camelo: Sim (risos).
Júlia Rios: Tem um comentário no YouTube que eu achei interessante, né? Você comentou do Letterboxd, aí eu tava lendo os do YouTube e aí tem um que fala “As garotas do filme elas conseguem fazer tudo de rebeldes juntas”, porque no filme elas fazem umas coisas que são proibidas para a idade, “mas quando se trata da sexualidade delas, elas não conseguem cruzar essa linha”. Foi a interpretação da pessoa, aí o que que você acha desse comentário?
Rafaela Camelo: Ah eu acho que é isso mesmo, né? Eu acho que eu vejo assim no filme que essa construção tá ali. Então, no momento de fumar um cigarro, comprar uma bebida, algo que, socialmente, é errado, mas é uma aventura. De fato, entender o que é aquele coração batendo, aquela ansiedade no momento que você tá apaixonado por alguém assim, isso é mais difícil de, não sei, de assumir ou de entender, traduzir o que é que está acontecendo. Então eu acho que o filme, a minha ideia era justamente trabalhar com essa sensação, do tipo, é tão fácil fazer isso, porém no momento em que você sente essa paixão pela primeira vez, isso sim que é uma coisa nova, né? E não o comprar o cigarro na vendinha do velhinho ali.
Alan Rios: Naquela vendinha da W3, né? E falando um pouco sobre Brasília, já que sua resposta anterior falou um pouco sobre isso também. É interessante que Brasília é uma cidade que é nova, quando a gente compara com as outras Unidades da Federação, então a gente tem essa busca pela construção da identidade de Brasília. O Plano Piloto foi planejado, o Plano Piloto ele tem aí uma identidade, principalmente arquitetônica, muito bem definida. Mas eu queria saber de você que tem a vivência em Valparaíso por exemplo, que é aqui no entorno do DF (Distrito Federal), já é Goiás. Quando a gente fala além do Plano Piloto, tem essa dificuldade de representar Brasília no audiovisual hoje, daqui do DF? Porque tem essa complexidade da identidade de Brasília, do que é Brasília fora do Plano Piloto, de como são as pessoas... Tem gente que fala que a gente tem sotaque, tem gente que fala que a gente não tem. Como é que é essa representação de Brasília no audiovisual hoje?
Rafaela Camelo: O que eu acho interessante disso que você que falou é que quando a gente tá fora de Brasília, o cineasta que eu vejo sendo mais lembrado como sendo daqui de Brasília, ele não se auto intitula como sendo um diretor de Brasília, mas sim da Ceilândia, que é o Adirley Queirós. Não que a gente aqui não faça, como Brasília, essa representação do Plano Piloto, eu acho que a gente tem vários nomes muito representativos. Então você vê o Vladimir Carvalho é um cara que filmou muito, né? E quando eu estava na faculdade, ele era esse grande nome de um grande cineasta de Brasília. Mas eu acho que tem esse movimento que eu acho que é o movimento natural, que eu acho que o mundo todo está passando, que é de tornar o acesso ao audiovisual, por mais que a gente esteja ainda engatinhando, mas uma coisa um pouco mais diversa, né? Eu acho que ainda tem muitos truques, acho que para você acessar um recurso público, para você entender, se integrar na cadeia de cinema, eu acho que isso exige também um certo acesso, um certo conhecimento que não está disponível aí, não tá disponível nem na faculdade que eu fiz, eu fiz UnB (Universidade de Brasília) e eu sinto que grande parte das ferramentas que eu tenho hoje de trabalho não foram coisas que eu aprendi na faculdade. Obviamente, a minha formação foi importantíssima para mim, foi parte da minha escolha por cinema, por roteiro, por direção, acho que veio da minha formação. Mas, exige muito tempo, muita disposição e muito conhecimento dos caminhos, Eu acho que hoje há necessidade de ver histórias mais diversas. Acho que vendo filmes em festivais, eu sinto até que a gente tá um período um pouco de transição porque a gente ainda vê muitos filmes com protagonismo de pessoas periféricas, de pessoas pretas, mas que ainda são feitos por pessoas não periféricas, pessoas brancas. Isso acho que daqui a, não sei, 5 (cinco), 10 (dez) anos a gente vai ver uma outra coisa acontecendo. Porque já dá para ver que existe, não sei nem se eu estou me comprometendo muito falando aqui, mas que existe um certo constrangimento já, desses autores.
Júlia Rios: Perfeito, Rafa. Agora, eu queria entrar no "O Mistério da Carne", que é um curta seu também, de 2019, de ficção, também financiado pelo FAC e que hoje está disponível na Cardume, que é um portal de curtas nacionais. De prêmios, ele recebeu Lince de Prata de “Melhor Curta” no FEST New Directors, New Films em Portugal, “Melhor Curta” no prêmio ABRA (Associação Brasileira de Autores Roteiristas) de roteiro, no festival de cinema latino-americano de Biarritz na França e “Melhor Filme” e “Melhor Direção” no CineFest Gato Preto, também teve o roteiro premiado no For Rainbow 2021 no Ceará e no Festival de Cinema do Vale do Jaguaribe no Ceará e recebeu no FRAPA em Porto Alegre os prêmios de “Melhor Diálogo” e de “Melhor Personagem” para Bianca Terraza como Camila, e também recebeu um prêmio de “Melhor Trilha Sonora”. E aí, de destaque, ele teve a estreia internacional em Sundance nos Estados Unidos, um dos festivais mais importantes e renomados do mundo e também foi selecionado em outros 16 (dezesseis) festivais. Percorreu América do Sul, América do Norte, Europa e África.
Alan Rios: E esse é um dos curtas que a gente mais deu spoiler aqui durante a nossa conversa para quem ainda não viu, né? Mas você pode contar um pouquinho sobre o que que é o filme, o que você pensou sobre ele?
Rafaela Camelo: Ele é um filme que é muito centrado nessas duas personagens. Acho que em uma relação um pouco de atração e repulsa dessas duas meninas. Ele se passa nesse fim de semana em que elas estão em um grupo de catequese, montando essa participação em uma cerimônia de lava pés, que acontece nas igrejas católicas próximo à Páscoa, em que o padre lava os pés dos fieis em sinal de humildade. E o filme é esse jogo entre o que acontece no mundo real e o que acontece só a partir do ponto de vista de uma das personagens, passando por essa questão de ciúme, posse e ela ver uma situação e ressignificar aquela situação, sem querer dar spoilers sobre o filme. Mas, esse é um filme que é um exercício sobre ponto de vista e sobre construção de personagem.
Júlia Rios: Você também falou dessa questão, tem a questão da religião, e aí tem uma sequência bem memorável do filme que é uma coreografia delas na igreja, que elas fazem uma dança que remete ao pecado. Aí eu queria entender como que é que foi a criação dessa coreografia, como que você pensou isso do roteiro, até os ensaios, para o set, até executar mesmo da forma que foi?
Rafaela Camelo: Essa coreografia, por incrível que pareça, foi feita muito rápido e foi uma das últimas coisas que eu decidi incluir no filme. Coisa de, sei lá, na semana anterior de filmagem. Foi uma coreografia criada pelo Gustavo Letruta, que ele também é aqui de Brasília, na época a gente trabalhava junto em outro projeto e a ideia era ressaltar esse elemento “nonsense” naquela parte da igreja, que de fato fosse um elemento que levasse a gente a entender com mais exatidão que aquilo não aconteceu de fato, aquilo é uma transferência desse mundo emocional da personagem para a tela, né? A gente gravou em uma... imagina gravar em uma igreja, de fato foi uma locação super desafiadora. Mas a gente tentou, ao máximo, pelo menos com aquelas pessoas que estavam presentes ali, que eram pessoas da comunidade, tentar protegê-las do que era o filme e proteger o filme também. Foi muito desafiador propor aquela cena na igreja. A gente tinha essa figuração toda ali observando. Então, o que me veio de estratégia na hora foi: “Tá, vamos buscar aqui algo que, de fato, possa ser entendido do que a gente vai fazer agora” e para a figuração eu falei: “Olha vocês já assistiram aquele filme ‘Mudança de Hábito’? Então assim, essas meninas vão entrar dançando e é como se fosse uma cena daquele filme, que é um musical, as meninas vão entrar assim”. E aí a gente conseguiu fazer, assim, sem gerar muitas perguntas sobre o que estava acontecendo. É engraçado ver como essa virou a cena mais icônica do filme.
Júlia Rios: Muito legal.
Alan Rios: E tem outro filme que é "As Miçangas" que a gente passaria horas só falando dos prêmios do filme. Mas, Júlia, conta um pouco sobre "As Miçangas".
Júlia Rios: "As Miçangas" de 2023, outro curta, que é de codireção da Rafa (Rafaela Camelo) com o Emanuel Lavor, também financiado pelo FAC (Fundo de Apoio à Cultura) e também tem financiamento do primeiro edital da Cardume Curtas, que também em breve vai estar disponível na plataforma da Cardume. Ele recebeu a “Melhor Curta” no Ibiza Cine Fest na Espanha, no Panorama Internacional Coisa de Cinema na Bahia e no Film Fest Dresden na Alemanha. Estreou na Berlinale, na Alemanha, que também é um dos festivais mais importantes e renomados do mundo e atualmente continua sendo distribuído, mas já foi selecionado em outros 23 (vinte e três) festivais. Então, foi para a América do Sul, América do Norte, Europa e Ásia.
Alan Rios: Para quem não viu "As Miçangas" ainda, como você pode explicar?
Rafaela Camelo: Eita... "As Miçangas" também é uma história de duas mulheres. Ele é um filme todo misterioso, todo silencioso no qual essas duas mulheres vão passar esse dia em uma casa no meio do mato. E quando elas chegam nesse lugar, a gente, como espectador, vê que existe uma cobra rondando. Não vou dar spoilers do filme, mas eu acho que é um filme que trabalha muito com isso também, com a questão do ponto de vista, com a questão do gênero. Usa alguns elementos de gênero de terror e de suspense. Nesse sentido do que as personagens vêem e o que a gente sabe. Então, eu acho que tem vários artifícios aí de gênero que a gente usa nele.
Alan Rios: Maravilha. Tem uma pergunta que a Júlia ia fazer sobre a codireção com o Emanuel Lavor.
Júlia Rios: Isso. Queria saber que combinados que vocês tinham para fazer essa relação de codireção funcionar. Foi a primeira vez que você estava codirigindo, né? Pelo o que a gente entendeu.
Rafaela Camelo: É foi a primeira vez que eu estava codirigindo e quando o Manu (Emanuel Lavor) me fez esse convite maravilhoso, a gente não se conhecia exatamente. A gente tinha essa relação com as atrizes, que é a Tícia Ferraz e a Pâmela Germano, já tinha trabalhado com as duas no "O Mistério da Carne" e o Manu (Emanuel Lavor) também já tinha trabalhado com elas em peças de teatro. E foi algo que eu aceitei, assim, sem muito pensar nas consequências. Hoje eu fico imaginando que é uma coisa muito intensa, muito íntima dividir a direção de um filme e, caramba, que coisa doida, eu ter, assim, uma pessoa que eu não conheço ter falado: “Ah vamos, vai ser ótimo”. Nesses primeiros momentos de desenvolvimento do filme que a gente começou a se acertar e a entender como seria a nossa participação conjunta. Acho que o Manu (Emanuel Lavor) é uma pessoa muito respeitosa, e eu mantive também muito respeito por ele, pela posição de autor dele do filme. E o nosso combinado era sempre ser muito direto e muito honesto um com o outro e todas as decisões, mesmo que fossem questões que eu tivesse que ceder em nome dele ou ele tivesse que ceder em meu nome, que a gente passasse para frente como uma decisão conjunta. Então, isso foi uma coisa muito importante dentro do processo que é a gente não se expor, porque das histórias que eu já ouvi das pessoas codirigindo eu acho que, assim como você tinha perguntado do início, daquilo “ah o diretor tem que ter todas as respostas?”, eu acho que no momento em que começa a essa relação entre dois diretores, (se existir) esses conflitos e começam a passar para a equipe, eu acho que isso desestabiliza e deixa a gente em um lugar delicado também, né? Então a gente teve muito cuidado com isso, de como a gente ia se apresentar para a equipe para que todo mundo fosse entendido que diretores eram nós dois, não tinha uma pessoa que cuidava mais do elenco, e outra que cuidava mais da câmera. Não, era os dois de fato tomando todas as decisões. Isso foi muito importante, acho que foi crucial para a nossa relação assim dentro do filme.
Júlia Rios: Beleza, Rafa. A gente queria agora comentar sobre o seu longa, que é o "Sangue do Meu Sangue" (“A Natureza das Coisas Invisíveis”), um longa de ficção financiado pelo FAC (Fundo de Apoio à Cultura), pela ANCINE (Agência Nacional do Cinema), pelo Fundo Audiovisual do Chile e pelo ALCA (Agence Livre Cinéma & Audiovisuel en Nouvelle-Aquitaine) que é um Fundo de Desenvolvimento na França. Ele é uma co-produção do Brasil, França e Chile e ele tá em pós-produção com previsão de estreia para 2025. Só que ele já venceu em primeiro lugar no Projeto Paradiso, durante o Cabíria Festival no Rio de Janeiro, em que você passou a integrar a rede Paradiso de Talentos e ele também venceu o prêmio do Laboratório Bal Lab no Festival de Biarritz na França, ganhou o “Melhor Pitching” no Icuman Lab em Goiânia e foi selecionada no Workshop Produire au Sud na França.
Alan Rios: Já que é um filme que tá em pós-produção, a gente não vai falar tanto assim de tantos detalhes, mas o que você pode contar para a gente sobre ele?
Rafaela Camelo: Ah, o que eu posso contar sobre essa história é que é um filme que fala sobre duas meninas também, duas meninas de dez anos, que estão vivenciando um processo de luto e de perda. É um filme que se passa grande parte em um hospital e outra parte aqui (Chácara Indaiá), justamente nesse cenário onde a gente está, essa árvore gigante é um dos símbolos do filme, e é um filme que fala sobre esses diversos significados, pequenas mortes que a gente tem durante a vida. É um filme que trabalha com muitos simbolismos, com algumas abstrações também. E que a gente tem esse plano de lançar em 2025.
Alan Rios: Que maravilha, você falou da pós-produção e durante aquele momento de gravação da cena, como é que você consegue identificar o potencial da cena? Como é que você consegue perceber que aquela cena ali ela merece ficar ou não?
Júlia Rios: E na montagem também, né? Se você vai cair com a cena ou deixar a cena.
Rafaela Camelo: É muito complexo esse momento de decidir o que fica, o que sai do filme, né? Mas o que eu tento sempre colocar em primeiro lugar é esse todo. Se aquela cena não está fazendo sentido no todo, então, não pertence àquele filme, né? Nesse lugar eu sou muito... qual é a palavra?... muito racional, não é racional, né? Mas muito metódica. Eu gosto de, no momento em que a gente está no processo de montagem, do pensar esses ritmos, pensar as colunas temáticas ali, como é que essa história está sendo contada. Eu acho que penso muito nisso, nessa projeção que vai se dar no momento da exibição do filme, como aquela história vai se completar no momento que as pessoas assistirem.
Júlia Rios: Isso é bem interessante que tem que ter um olhar, acho que também você tem que ter o seu olhar com o que é importante para o filme, mas também um olhar mais estratégico, e também de narrativa para a pessoa entender. Pensando nisso também, nessa coisa do que que pertence pro filme, o que não, queria te perguntar do processo de pré, que é comum para longa metragem que é ir para Laboratórios, né? Que geralmente quando você vai para Laboratórios você recebe consultorias de diversas pessoas, as pessoas opinam bastante no seu projeto. Aí eu queria entender como que é para você receber esses feedbacks e saber se o feedback vai te agregar no filme, ter essa segurança de saber o que está de acordo com sua visão e com o seu projeto e também ter essa segurança de saber, entender assim “pô esse feedback aqui eu vou escutar, mas ele se eu acatar esse feedback talvez ele mude radicalmente a minha história”. Então, como ter talvez essa frieza de entender o que é mais interessante para o projeto?
Rafaela Camelo: O "Sangue" (“A Natureza das Coisas Invisíveis”) foi um roteiro que ele foi completamente desmontado. Até a versão que ganhou o Cabíria, que foi em 2019, eu acho, pouca coisa se manteve, né? Eu acho que nesse processo dos Laboratórios não é exatamente as sugestões que os consultores dão, não são coisas que são incorporadas de uma forma muito pragmática. Mas eu acho que os consultores que conseguem ir identificando e ir trabalhando... Os consultores que conseguiram ir trabalhando comigo quais eram os elementos que eu sentia falta ou que me deixavam desconfortáveis no filme, ou o que enfim eu achava que não pertenciam àquele filme. De conversar comigo sobre as questões que eu identifico como frágeis. Eu acho que essas foram as consultorias que, para mim, foram mais valiosas, obviamente nesse processo de consultoria, quando você entra em um laboratório, às vezes você fala com três, quatro pessoas diferentes. Sempre tem alguém que vai se conectar mais ao projeto, outra pessoa que às vezes não tem uma bagagem de referência que se conecta com você ou que não conseguiu visualizar o filme assim. Então acho que são coisas naturais, você passa por pessoas que vão de fato contribuir, que vão te fazer perguntas interessantes e que vão te fazer apontamentos interessantes e pessoas que aquele não é o momento, aquele não é o projeto que ela vai poder contribuir. Acho que isso é natural. E eu acho que o que existe de mais valioso nesses momentos é você, de fato, parar para poder se dedicar ao processo, estar aberto a ouvir e dedicar um tempo seu exclusivo para aquele projeto, né? Eu acho que durante o processo de laboratórios, tiveram muitas coisas que eu levei em consideração que é também quando a gente encontra pessoas que estão de fato disponíveis a compartilhar com você um ponto de vista delas sobre o filme, é quase uma prévia do que vai acontecer depois, né? Depois que o filme rodou, tá gravado, é aquilo que a gente falou antes, né? As pessoas vão também ter impressões e impressões diferentes sobre o filme, né? Então no laboratório você encontra alguém que de fato possa te surpreender com uma visão que você não tinha imaginado, acho que vira um material interessante para você fazer escolhas.
Júlia Rios: Que chique. Rafa, fechando essa parte dos filmes, a gente tem perguntas sobre destaques da sua carreira que interessam muito a gente, que é sobre a sua seleção, em 2021, no programa latino-americano do Berlinale Talents, o Talents de Buenos Aires. Como que foi essa experiência? O que significa esse programa?
Rafaela Camelo: O Berlinale eles têm, se eu não me engano são três ou quatro seleções que são regionais, eu sei que tem em Guadalajara, tem em Buenos Aires, não lembro os outros, mas que a ideia desses programas é fazer uma seleção de pessoas, mais do que de projetos. Eu fui selecionada no momento de pandemia. Então, ele é um programa que acontece presencialmente mas eu fiz online e era naquele momento que a gente ainda estava entendendo como era viver na pandemia, né? Mas a ideia dele é ser criada uma rede de pessoas. Eu com as pessoas que foram da minha edição, que a gente conseguisse se encontrar e trocar experiências e, futuramente, trabalhar juntos. Tem ali ainda o grupo que a gente sempre se comunica, mas eu sinto que essa também é uma participação importante para se conseguir alcançar o próprio festival de Berlim. Então eu sinto que é algo importante ter passado por essas etapas que são regionais.
Alan Rios: E a Rede Paradiso, o que você pode explicar para a gente? Como é que funciona?
Rafaela Camelo: A Rede Paradiso, nossa, eu acho que é um projeto tão interessante e tão bom, eu tenho até medo que acabe assim, né? É muito interessante a proposta da Rede Paradiso, é uma rede de talentos, ali dentro tem, eu acho que é o "menino dos olhos" deles, né? Que é a Incubadora (Paradiso), que aliás, o Emanuel Lavor faz parte. E a ideia deles é ir criando essa rede. Então eles estão aliados a alguns festivais, laboratórios e a própria curadoria desses festivais que escolhem uma pessoa que participou para poder ganhar esse prêmio e passar a integrar a rede. Dentro da rede a gente tem acesso a oportunidades que são exclusivas, então, bolsas, descontos, tradução de roteiro. E eles geram, de fato, esse ambiente em que as pessoas que fazem parte do Paradiso construam projetos em conjunto. Então a Rede Paradiso, sem dúvida, foi um grande momento para mim, a entrada (na Rede Paradiso). E eles são muito abertos a ouvir sugestões nossas. De início se trabalha muito com a parte de roteiro, agora dá para ver que eles estão abrindo um pouco mais para outras oportunidades, mas ainda sim dentro desse lado da cadeia que é mais frágil, né? Assim, digo mais frágil no sentido de existem poucos financiamentos e poucos lugares onde se invista em cineastas que ainda não tem o primeiro filme, né? Então é muito interessante o foco que eles dão.
[Música Instrumental]
Alan Rios: Rafa, agora a gente está chegando ao final, infelizmente, e para a gente fazer essas conclusões, nós vamos fazer uma série de perguntas que a gente precisa de uma resposta mais rápida para gente ser mais dinâmico, um bate e volta. Nessas respostas mais rápidas, que livro que você recomenda que você lembra de cabeça?
Rafaela Camelo: Tem um livro que eu li tem uns dois anos mas, sempre quando me vem essa pergunta eu lembro dele, que é o "A Cabeça de Santo" da Socorro Acioli. Que ele tem essa característica que a gente vê muito no América Latina, esse realismo fantástico, mas de um jeito muito sertanejo, muito brasileiro. Se conecta muito comigo, é um livro que eu gosto muito, recomendo.
Júlia Rios: Rafa, e que site você usa bastante para o cinema?
Rafaela Camelo: Eu sou a favor da volta do Pinterest, que é uma ferramenta que eu redescobri há pouco tempo, durante o “Sangue do Meu Sangue” (“A Natureza das Coisas Invisíveis”), que eu acho que é muito interessante para a criação desses universos visuais. As sugestões que esse site dá, eu acho que é muito interessante nessa construção visual.
Alan Rios: E que filme que já existe que você gostaria de ter feito?
Rafaela Camelo: Ah, acho que qualquer um da Alice Rohrwacher, eu queria ser ela. Mas vou citar aqui o "La Chimera", é o último filme dela que eu assisti no cinema e que foi realmente, enfim, me fez me reapaixonar por cinema. Eu amo a estratégia que ela tem entre esse cinema realista e fantástico, acho ela uma grande cineasta.
Júlia Rios: Legal. E que filmes do DF que te marcaram?
Rafaela Camelo: "Mato Seco em Chamas" do Adirley (Queirós), que foi um filme que eu saí muito mexida do cinema. E eu acho que é um cineasta que a forma de fazer os filmes, a forma que ele inaugura eu acho muito interessante com aprendizados para a gente.
Alan Rios: E que profissional do audiovisual do DF você citaria como homenagem?
Rafaela Camelo: Dácia Ibiapina, minha professora de UnB (Universidade de Brasília), que é uma pessoa que eu tenho um imenso carinho também e que acho também a produção dela, o ponto de vista dela muito interessante, com uma carreira muito interessante e, sem dúvida, uma das grandes personalidades da cidade.
Júlia Rios: E o que que te desanima no cenário audiovisual brasileiro hoje?
Rafaela Camelo: A dificuldade que a gente volta a ter no acesso a financiamento sendo produtoras pequenas, nota 1 (um), nota 2 (dois) na ANCINE (Agência Nacional de Cinema). Eu acho que isso é uma tristeza, a gente está sempre nesse momento de reconstrução, isso é cansativo.
Alan Rios: E o que que te anima?
Rafaela Camelo: O que me anima é essa tomada de poder e de voz que eu vejo pessoas periféricas, pessoas fora do eixo tomando. Eu acho que eu já me vejo até um pouco como antiga assim, em alguns momentos. Eu acho que uma forma de produção como o próprio Adirley (Queirós) faz. Que me anima muito ver que existem outras possibilidades de cinema.
Alan Rios: E a gente tem uma dinâmica aqui do nosso podcast que é sempre criar uma pergunta, sempre trazer uma pergunta que foi criada por outra pessoa que a gente já entrevistou. E a gente tem uma pergunta para você da Edileuza Penha de Sousa, né, Júlia? Você faz a pergunta da Edileuza?
Júlia Rios: Faço! A Edileuza te perguntou: “Qual a importância de falar de amor no cinema? E por que que você escolheu o amor como tema dos seus trabalhos?”.
Rafaela Camelo: Belíssima pergunta. Agradeço à Edileuza, um beijo Edileuza. (risos). Amor é tudo, né? Eu acho que, de certa forma, todos os outros grandes temas assim né, essas descobertas, saudade, perdas, todos eles atravessam a questão do amor. Acho que o amor é um grande tema universal, e falar do amor, do amor diretamente assim, pode parecer meio, eu não tenho muito medo de ser piegas, adoro ser piegas, acho que é uma coisa super brasileira, super latina, falar de amor, falar de romance. E eu acho que no momento em que a gente perde o medo de falar de algo que é como se fosse uma cor básica ali, que é tão essencial para a gente, eu acho que a gente consegue se conectar melhor com as pessoas. Então pensando em filmes como experiências, como uma emoção que pode ser compartilhada que pode ser compartilhada entre o diretor e sua audiência, eu acho que o amor de fato é um sentimento que eu tenho vontade de compartilhar com as pessoas.
Júlia Rios: Rafa, um dos nossos entrevistados também vai ser a dupla de diretores, que é o Bruno Victor e o Marcus Azevedo, você tem alguma pergunta que você queira fazer para eles?
Rafaela Camelo: A pergunta que eu gostaria de fazer para o Bruno (Victor) e para o Marcus (Azevedo) é “Qual personagem do cinema brasileiro eles gostariam de trazer para um filme deles? E por que?”.
Alan Rios: Maravilha. E assim a gente vai encerrando, a gente falou sobre muita coisa, eu queria que você concluísse falando como que as pessoas podem acompanhar seu trabalho, quais são suas redes sociais, agora é aquela hora de se vender.
Rafaela Camelo: Eu não sou muito ativa nas redes sociais, mas meu arroba no Instagram é @rafaelacamelov ou “camelove” para chegar no tema. Podem seguir também a @apoteóticacinematográfica, que é a minha produtora.
Alan Rios: Muito obrigada por vir até aqui, muito obrigada por falar com a gente. Teve algum tema que a gente não conversou, tem alguma consideração final que você queria fazer?
Rafaela Camelo: Ah, eu quero agradecer vocês pelo convite, por essa escolha do cenário, fiquei muito emocionada, me sentindo muito grata, muito acolhida aqui nessa entrevista. E obrigada, espero que tenha sido de valor para vocês e para quem está ouvindo também.
Alan Rios: Maravilha!
Júlia Rios: Com certeza foi, Rafa. Muito obrigada, é muito legal receber você aqui, poder conversar com você, tenho certeza que quem estiver escutando vai se sentir muito inspirado e provavelmente vai ajudar muito no trabalho de quem está começando também.
Rafaela Camelo: Obrigada, obrigada.
[Música instrumental]
Júlia Rios: Este podcast é uma realização da Respiro Filmes com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal e da Secretaria de Cultura. Com pesquisa, roteiro e apresentação por Júlia Rios e Alan Rios. Direção, captação de áudio, edição e mixagem de som por Luiza Chagas. Produção por Heloísa Schons. Captação de imagem por Gabriel Machado da Ada Audiovisual e trilha por Pratanes. Agradecemos a Chácara Indaiá que nos recebeu. Obrigada por escutar! Siga a gente no Instagram no @respiro.filmes e no nosso canal do YouTube (Respiro Filmes). Até o próximo episódio!
Alan Rios: Tchau, tchau! Até o próximo.
